- Tadinhas das senhoras!
O meu comentário justificava-se quando, na antevéspera, questionei por telefone se o espectáculo se realizaria apesar da previsão de chuva copiosa. E me confirmaram que, apesar das três actrizes se exporem à inclemência da meteorologia, o espectáculo iria por diante.
Chegado ao dia víamo-lo a cumprir as suas promessas: ainda os espectadores aguardavam junto às salamandras da grande sala de recepção do grupo e já a ventania fazia embater a porta de entrada com toda a força.
Arriscar-se-iam Ana Brandão, Crista Alfaiate e Paula Só a essa verdadeira prova de resistência de produzir arte, mesmo nas condições mais adversas?
Mesmo que atrasados por um quarto de hora, lá nos dirigimos para a sala, acautelados com um chapéu de chuva e com uma botija de água quente para os que se sentissem mais friorentos. Para nos depararmos com uma ideia cénica espantosa: uma das paredes da sala - aquela para onde se direccionavam todas as cadeiras do anfiteatro - abria-se para a rua e víamos ali a encosta do Vale dos Barris com as suas árvores batidas pelo vento, sob um céu de cinzento carregado.
Surge então uma noiva acabada de fugir do seu casamento. O vestido está sujo, porque ela vai tropeçando nas muitas voltas do tule, mas mais enredada surge ela na sua confusa mente em que não consegue compreender se era mesmo isso que pretendia.
Como interlocutoras tem outras duas mulheres encontradas ao acaso. São de duas gerações diferentes, mas ambas também a contas com relacionamentos difíceis com omissos parceiros masculinos.
A mais velha sofrera as agressões físicas e verbais de um marido que, mesmo defunto, lhe deixara o papagaio com discurso ensaiado para insultá-la. Até ao dia em que o matara e o empalhara, mas sem o conseguir calar, porque, na sua própria cabeça, continuava-lhe a ouvir os insultos soezes.
A outra é uma mulher de meia idade, que se afastara progressivamente dos homens desde que deles testemunhara os seus conceitos de passeios românticos: irem, por exemplo, participar numa matança do porco.
De cumplicidades se vai consolidando esse encontro de três mulheres à procura de identidade, de saída para os impasses em que as respectivas vidas as tinham acossado.
É mais do que uma peça feminista, porque estão ali espelhadas as opressões, que impedem a plena demonstração do nosso potencial enquanto seres dotados de conhecimentos e de experiências. Porque todos procuramos saídas, já não tanto para essas promessas de felicidade incumpridas, mas, pelo menos, para sentirmos que somos nós a tomar as rédeas dos nossos rumos sem que haja quem no-los queira dirigir.
Acabada a peça com os aplausos vibrantes do público, é fácil compreender que «Rua de Dentro» muito deve à interpretação das actrizes, à concepção cénica de Sara Castro e de Ana Vicente, mas também às próprias condições climatéricas, desta feita parte integrante de três histórias em que a tempestade íntima está sempre presente.
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