quinta-feira, março 05, 2020

Nas margens: Glenn Gould, John Cage e Camille Pissarro


1. Muitas são as interpretações das Variações Goldberg de Bach, mas nenhuma se compara com a da lavra de Glenn Gould. Com ele há tempo suficiente para escutar o silêncio instalado entre cada duas notas dedilhadas no piano, como se nos desafiasse a imaginar a possibilidade de parar definitivamente a meio da peça forçando-nos ao remanso absoluto para nos convencer de se tratar de algo tão sublime, quanto o das notas na partitura.
2. John Cage também enfatizou o silêncio. A tal ponto que a sua peça 4’33’’ tornou-se numa das mais importantes da música contemporânea, surpreendendo os espectadores com os músicos em palco a interpretarem os três movimentos sem extraírem dos instrumentos o mínimo som. Porque, em vez deles, a peça acabava por substanciar-se nas tosses nervosas, nos estalidos das cadeiras e outras manifestações da presença incomodada de quem, da plateia, deparava com a surpresa dessa ausência de sons. Mas, levando as suas experiências sobre o silêncio a uma dimensão ainda mais absoluta, Cage quis explorá-las em câmaras completamente estanques a qualquer vibração sonora. Contaram as cobaias que o resultado foi inesperado: passados alguns momentos começaram a sentir as vertigens, os desequilíbrios de quem via negadas as impercetíveis sonoridades, que servem de referência à pose controlada.
3. No seu tempo Camille Pissarro também foi um inovador. À distância de mais de um século podemos não apreciar os seus quadros em comparação com o dos outros impressionistas, mas ninguém lhe tira o mérito de ter-se inventado a si mesmo, sem qualquer formação académica e abrir os primeiros trilhos por onde depois singrariam Cézanne, Monet e outros pintores que o tratavam por «pai», de tal forma por ele se sentiam inspirados e estimulados. E, mesmo quando alguns deles se cansaram do esforço inglório de chegarem à notoriedade intrometendo-se entre os académicos nas exposições oficiais, Pissarro manteve a determinação de fazer do Salon des Indépendents a afirmação de quem impunha como cânone a irreverência dos mais jovens.

quarta-feira, março 04, 2020

Diário das Imagens em Movimento: A oportunidade de reencontrar o humor de Karl Valentin


Não é fácil reencontrar os episódios televisivos rodados em 1979 para garantirem alguma posteridade  à peça E Não se Pode Exterminá-lo?, que foi uma das mais memoráveis de quantas a Cornucópia apresentou nos anos subsequentes à Revolução de Abril. Mas, para a semana, podem ser vistos na Cinemateca a pretexto da retrospetiva aí em curso sobre toda a atividade cinematográfica de Jorge Silva Melo que, além de intérprete, também corealizou com Solveig Nordlung esses diversos fragmentos das peças criadas por Karl Valentin, reconhecido por Bertolt Brecht como um dos seus mais influentes mestres.
Temos, pois, a oportunidade para apreciar um tipo de humor pessimista e trágico, que tomava por inimigos de estimação todas as autoridades. Havia em Valentin uma irreverência tão indomada que chegou a ver o seu teatro fechado em 1931 só por recusar a ordem dos bombeiros para deixar de ter uma beata acesa durante um sketch. E obviamente que o nazismo significou um cerceamento das suas atuações projetadas especialmente para os espetáculos de cabaré.
Jorge Silva Melo e Luis Miguel Cintra protagonizam os diversos episódios, que mostram Valentin nas lojas, a cantar, na orquestra, no trabalho ou a fazer balanço. Com eles contracenam outros grandes atores e atrizes, que vão ficando injustamente esquecidos depois de nos terem dado tantas provas do seu talento nessa época: Raquel Maria, Isabel de Castro, Ruy Furtado, Orlando Costa, Zita Seabra entre tantos outros.
Depois desta hipótese de evocação sobre o que era a Cornucópia nos finais dos anos 70 e quem foi Karl Valentin, quando voltaremos a ver replicado este privilégio?

terça-feira, março 03, 2020

Diário de Leituras: Iniciando a leitura de um ensaio sobre a cor amarela


Ao dedicar-se ao amarelo, depois de já ter publicado estudos sobre o azul, o preto, o verde e o vermelho, Michel Pastoureau reconheceu a dificuldade de abordar uma cor discreta, pouco frequente no nosso quotidiano e ainda mais rara no universo dos símbolos. E, no entanto, os povos da Antiguidade consideravam-na sagrada por estar associada à luz, ao calor, à riqueza e à prosperidade. Os gregos e os romanos davam-lhe proeminência nos seus rituais, tal como os celtas, que viam-na como simbolizando a imortalidade.
Foi nos tempos medievais, que o amarelo se tornou ambivalente: por um lado era visto como a cor do enxofre demoníaco, dos mentirosos, dos hipócritas e até mesmo dos loucos. Quando acompanhou os preconceitos antissemitas conotaram-no com as sinagogas, datando desse período as infames estrelas amarelas. Mas, por outro lado, também era visto como a cor do mel e do trigo maduro, ou seja da alegria e abundância.
Nos séculos seguintes a depreciação do amarelo prosseguiu quer no mundo da Reforma, quer da Contra-Reforma. Até aos dias de hoje, quando tanto o  associam ao desagradável e perigoso no seu tom esverdeado indiciador de toxicidade, como à alegria sadia e revigorante, quando se aproxima das tonalidades alaranjadas.
Desde 2000  que o prestigiado especialista da época medieval Michel Pastoureau tem-nos ajudado a olhar as cores de forma diferente, não só no que representam, mas como acompanharam a civilização humana desde os seus primórdios. Este é já o seu quinto ensaio dedicado a esse objetivo.
Depois dos primeiros capítulos dedicados aos ocres do Paleolítico, ao metal amarelo e às mitologias baseadas no ouro ele aborda os cultos solares, donde extraímos o seguinte trecho:
“Visto da  terra, o sol parece amarelo, pelo menos se estamos com tempo aprazível a meio do dia. No entanto, para  os astrofísicos a sua verdadeira cor é branca, porque é essa a da luz que a estrela envia na direção à terra. Ela é composta de raios coloridos, que a atmosfera filtra, desvia ou retém. O roxo e o azul, por terem baixa frequência, dispersam-se, vendo-se removidos do espectro solar quando a luz branca cruza as diferentes camadas da atmosfera, o que explica porque o céu é azul quando o sol está na máxima intensidade. A cor dominante é a amarela quando o sol está no zénite ou alaranjada, até mesmo avermelhada, quando se levanta ou vai para a cama.
Essas são as explicações modernas. desconhecidas pelas sociedades antigas. Mas cedo se estabeleceu  um vínculo entre essa cor e a luz. Brilhante e radiante, o amarelo tornou-se cor benigna e assim permaneceu por longos séculos. É apenas no coração da Idade Média, que os aspetos negativos do amarelo ganharão precedência sobre os valores positivos.
Vamos pensar um pouco no sol antigo. Rei de estrelas, fonte de calor, luz e fertilidade, inimigo das trevas e forças do mal, foi deificado muito cedo, dando origem a vários cultos no Velho e no Novo mundo. Nem todos são tão sangrentos quanto os dos astecas, que lhe ofereceram sacrifícios humanos receosos de que perdesse energia e deixasse de se levantar todas as manhãs. Mas muitas pessoas viram nele o princípio de toda a vida, o antepassado dos deuses, às vezes dos seus reis ou do seu povo.”
Numa pintura mural encontrada na villa Ariana, na colina de Varano, perto de Nápoles, surge esta representação de Artémis, (a Diana dos romanos), que era a deusa da lua, da caça e da natureza. Nesse sentido correspondia ao contraponto do irmão gémeo, Apolo, que  era o deus da luz solar. Espelhando essa equiparação ambos ostentavam o arco e a flecha de prata. E ela apresentava uma associação explicita entre as duas cores, o branco e o amarelo, razão porque, na Grécia, alguns dos locais de culto a ela dedicados, tinham as sacerdotisas a vestirem de amarelo.

segunda-feira, março 02, 2020

Diário das Imagens em Movimento: O olhar de Monet, as falésias da ilha Coron e as mulheres em falta na Ásia


1. Claude Monet, o olhar do pintor é um documentário de Matthias Frick rodado para estimular a visita ao museu Barberini de Potsdam que, desde 22 de fevereiro, apresenta uma retrospetiva do mestre impressionista, escolhendo como perspetiva a importância dos sítios onde viveu na definição das diversas fases da sua obra, todas elas orientadas para a inovação, em rutura com os ditames académicos na intenção de reproduzir a natureza tal qual existia fora do ateliê.
Saindo de Paris através da gare Saint Lazare, passa-se por Argenteuil e Rouen (cuja catedral pintou e repintou vezes sem conta) até chegar a Giverny, onde os jardins e seus nenúfares lhe deram ensejos criativos anos a fio. Porque mudando a luz com tão pródiga frequência, o que iluminava logo tudo transformava no que pintava a cada instante. Daí que o mesmo motivo aparecesse repetido nas suas telas, mas de formas completamente diferentes umas das outras.
2. Os Tagbanwa são um povo do arquipélago filipino, que o navegador Marc Thiercelin contactou num dos episódios da sua série de Encontros com os Povos dos Mares. Graças ao seu reconhecimento como domínio ancestral, a ilha Coron, onde habitam, também é por eles administrada estando vedada ao turismo de massas. Mas os tagbanwa s não se mostram indiferentes às oportunidades de negócios com o exterior, razão porque Roy, um dos líderes da comunidade, escala todas as primaveras as íngremes falésias para recolher os ninhos de andorinhas, avidamente procurados nos mercados asiáticos pela suposta delicadeza do seu sabor e as alegadas virtudes medicinais garantidas com a sua ingestão.
3. Um Mundo sem Mulheres, documentário assinado por Antje Christ e Dorothe Dörholt, aborda os desequilíbrios suscitados por décadas de controles das taxas de natalidade e de abortos seletivos em diversos países asiáticos. Os cálculos apontam para um deficit de 200 milhões de mulheres relativamente à paridade entre os dois sexos. O que equivale a constatar que um em cada cinco rapazes, hoje nascidos na China, não encontrará esposa com quem casar. Explica-se assim o rapto de bebés do sexo feminino para serem educadas em famílias endinheiradas dispostas a casarem-nas com os filhos varões, quando chegarem à maioridade. Ou os mercados matrimoniais nos jardins, onde velhas mães propagandeiam os méritos dos filhos celibatários para os quais anseiam encontrar parceira.
A China não está sozinha nesta situação: na Índia, na Coreia do Sul ou no Vietname ela replica-se quer nos números, quer nos efeitos (raptos, tráficos, exploração sexual). Nos últimos anos, apesar de vários alertas sobre o agravamento do problema, essa tendência não conhece inflexão...