quarta-feira, março 01, 2017

(EdH) Quando duas culturas se desconhecem e não conseguem relacionar-se

A notícia da existência de sete planetas semelhantes à Terra numa das estrelas mais próximas do Sistema Solar justificou parangonas como se nos houvéssemos aproximado decisivamente da possibilidade de entrarmos em contacto com outras civilizações extraterrestres. Há por aí muito solitário que, não lhe bastando os biliões de pessoas que desconhece neste planeta azul, anseia por humanoides e outros esquisitóides, que vão fazendo as suas vidinhas lá muito longe, nalguns daqueles pontinhos cintilantes, que mal nos iluminam as noites.
Cá por mim se quero ter uma experiência de 3º grau com extraterrestres olho para o meu gato procurando-lhe detetar os pensamentos escondidos por trás do seu inexpugnável olhar. Só o consigo adivinhar quando, às horas certas, lembra-nos o dever de lhe encher a malga da comida ou ao miar desalmadamente no final da madrugada por achar excessivas as horas passadas pelos donos na cama.
A própria História dá-nos um cheirinho do que poderá ser a dificuldade de duas culturas diferentes encontrarem pontos de interligação. Por exemplo é quase impossível compreender o que Amonute terá sentido no convés do navio que descia o Tamisa, quando a saúde se lhe agravava a olhos vistos e John cuidava dela com a inquietação de a saber incapaz de voltar a atravessar o Atlântico. Alguma vez terá compreendido o mundo europeu em que se vira integrada através do casamento com o rico plantador de tabaco da nova colónia da Virginia? Terá reequacionado os seus valores à luz daquela realidade europeia, tão diferente do pequeno mundo dos índios Powatan, em que nascera e crescera?
Nesse sombrio dia de março de 1617 Rolfe já se convencera da insensatez de a ter trazido à corte: a curiosidade inicial, que justificara a receção do rei, depressa cedera à angústia de se ter visto demasiado distante da terra onde ficara toda a família. Não só tudo se lhe revelara estranho como não dera sinais de simpatizar com os seus usos e costumes. Nem mesmo vestindo as roupas elegantes com que os pintores se tinham apressado a eterniza-la.
Quando atracaram em Gravesend para encontrar quem lhe pudesse valer, já nada era possível senão alguma comodidade para o passamento. Tinha 22 anos e fora vítima da incompreensão entre a sua cultura e a dos colonos de Jamestown.
Isabel I encarregara Walter Raleigh de fazer a prospeção da costa do novo continente onde os portugueses e os espanhóis tinham expandido o comércio mais a sul. Ambicionava alcançar as riquezas da Índias Orientais pela rota do Noroeste, já que a do Cabo da Boa Esperança lhe estava vedada.
Que a futura colónia se mostrava agreste, demasiado selvagem, assim o demonstraram as primeiras tentativas de ali fixar alguns dos seus súbditos. Só em 1607, já no reinado de Jaime I e, sob a égide da recém-fundada Companhia Londrina da Virgínia, se ensaiou tentativa mais séria com a criação de um forte nas margens do rio cuja foz se descobrira na baía de Chesapeak.
Os primeiros meses da implantação inglesa quase tinham resultado num desastre: não bastavam os ataques dos pouco recetivos índios e ainda se somavam as febres e as diarreias. Esfomeados e remetidos ao exíguo espaço dentro das paliçadas de madeira, os camponeses, artesões e os desabonados segundos e terceiros filhos das famílias aristocratas morreram que nem tordos. Apesar de estarem no vigor dos verdes anos, dois terços dos envolvidos nessa primeira vaga de emigração morreram nos primeiros cinco meses.
Em desespero de causa um rufia chamado John Smith, fez-se acompanhar de alguns companheiros de infortúnio, e saiu do forte em busca de ajuda junto da inamistosa tribo com que já haviam pelejado. Têm a sorte por seu lado: os vizinhos estão igualmente interessados numa aliança com esses brancos vindos do outro lado do mar, que imaginam passíveis de serem conquistados para os seus valores e acrescentarem-se à debilitada força dos seus guerreiros.
Adotado pelo Grande Chefe Wahunsunacock, Smith toma-lhe a filha, Amonute, por concubina numa realidade bem diferente da divulgada pelas produções Disney sobre a suposta Pocahontas.
Apesar das afinidades, se não eletivas, pelo menos sexuais, será crível que a rapariga índia, então ainda com 12 anos, pouco tenha conseguido falar ou sequer conhecer do amante. Respeitava tão só a tradição, que a mandava submeter-se à vontade paterna. A exemplo do meu gato, ou dos eventuais seres extraterrestres com que entrássemos agora em contacto, faltava-lhes um linguajar comum, usos e costumes compatíveis.
Dois anos depois, Smith fica seriamente ferido numa explosão acidental e regressa a Inglaterra em busca de solução médica. É quanto basta para que se quebre a paz entretanto estabelecida entre colonos e índios. Entre os Powatans a fação guerreira prevalece e a meteorologia favorece nova declaração mútua de hostilidades: entre 1606 e 1612 uma enorme seca reduzira a quase nada a possibilidade de retirar da terra o sustento, mesmo que magro. Falhara, igualmente, o envio de víveres e de mais colonos a partir de Inglaterra, porque a respetiva expedição naufragara no mar das Caraíbas. As febres e a fome voltam a dizimar os enfraquecidos colonos, com os poucos sobreviventes a decidirem-se a pôr fim à aventura. Já estavam de partida para a travessia oceânica, quando chegam , enfim, novos reforços.
Entre os recém-chegados está esse John Rolfe, que viria a tomar Amonute por esposa. Os soldados, que o tinham acompanhado, venceram rapidamente os índios e tinham-na feito refém. 
No ano de cativeiro antes desse consórcio Amonute tivera de mudar de nome, passando a chamar-se Rebecca e fora batizada. Rolfe encetara, entretanto, a plantação de tabaco, que depressa começaria a exportar para o ávido mercado europeu. A visita a Inglaterra, quatro anos depois de se fixar na colónia da Virgínia, obedecera ao desejo de se afirmar pelo sucesso nas terras virgens.
Talvez Amonute tenha visto agravada a depressão debilitante ao dar de caras com John Smith nessa perturbante Londres. A sua cultura imporia que, adotado pelo pai, ele tivesse regressado à tribo e ajudasse a criar os elos entre povos tão diferentes. Mas ele quase fingira desconhece-la…
Despedindo-se da vida tão sozinha, ela prenuncia o que sucederia a qualquer outra civilização desconhecida, que reputaríamos mais atrasada e à qual nos quiséssemos impor, sem sequer investirmos esforço bastante para a conhecer.

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