segunda-feira, março 27, 2017

(DL) «O Trevo de Adão» de Luís Carmelo

Antes de entrar no romance vale a pena determo-nos nas informações prévias sobre o que nele encontraremos:  sem saber como nem porquê, um homem irá viver três vidas diferentes sob as identidades sucessivas de Adão, Caim e Abel. Ainda tendo bem presente o mais recente romance de Paul Auster, preparo-me para estória similar, mas as referências se as houver que referir, são mais pessoanas nos seus diversos heterónimos do que qualquer outra coisa.
Nas primeiras páginas ficamos a saber que Adão nasceu em noite de aurora boreal sobre Lisboa e com a avó Albe a saudar a sua entrada na vida, despindo-se o suficiente para ir à janela  e mostrar as mamas ao sol. É isso que Abel começa a contar a um espantado interlocutor, Zorba,  quando o encontra junto ao Tejo.
Na pele de Adão casara com Luísa de quem tivera uma filha, mas, cansando-se da entediante conjugalidade, abandonara-as para seguir a vocação de cantor de música pimba. Nas digressões pela província conhecera a vistosa Arlete a quem logo tratara de instalar em Lisboa, quando se estava a tornar no mediático apresentador de um programa televisivo de variedades.
O grupo de ouvintes, que começa a seguir Abel, vai aumentando em número: a Zorba somara-se a filha, Isabel, a mulher, Joana, e a neta, Júlia. E estranha-lhes o facto de o não reconhecerem pois fora rico e famoso sob os pseudónimos de Ezequiel, enquanto cantor pimba, e César Leme enquanto fadista. Sempre disputado pelas várias televisões, que recorriam a todos os meios para lhe garantirem o exclusivo.
O relato é tão interessante para quem o ouve, que as manifestações sindicais, que lhes passam ao lado, não merecem a mínima atenção.
Abel chega então à parte em que Adão desmaiara durante um programa e fora levado para o hospital onde os médicos lhe anunciaram a singularidade do seu corpo, onde bombeavam dois corações.
Ora por ser novidade perturbadora, ora pelo cansaço do passeio, o grupo faz um breve intervalo na Igreja do Corpo Santo. E já o sentimos com o seu quê de crístico, pois Abel já está acompanhado de doze ouvintes, como se todos participassem na Última Ceia. O final do romance confirmará esta presunção nesta altura ainda sem grande fundamento.
Relatada a morte súbita do cantor e os grandes funerais com que o homenagearam, logo Abel revela o céu avermelhado com que dera por si no jardim da Estrela sem saber como se livrar do caixão. Dirigira-se à casa da Bica donde Arlete desaparecera, mas onde escondera um cofre cheio de dinheiro com que se dirigira para Badajoz.  O objetivo final era Barcelona onde sabia existir competente clínica de cirurgia plástica.  No comboio em trânsito pelos campos de Castela surgiu a oportunidade para reverenciar o Quixote de Cervantes, na pessoa de Alonso, uma réplica de Sancho Pança, que ganhava a vida a lançar fogo-de-artifício de terra em terra. E não adivinhamos que está aqui lançada mais uma pista para o epílogo do romance.
Fora numa clínica de Pedralbes, que Adão se convertera em Caim e conhecera a enfermeira Sara com quem regressara a Lisboa. Sem dinheiro fora a nova companheira a arranjar solução: lançaram-se no negócio dos bordéis para clientela VIP, um em Lisboa e outro no Porto Brandão.
Ele comprazia-se com essa “segunda vida após a insondável morte  - uma metamorfose real, a que não faltava ímpeto, mulher, desejo, dinheiro e sobretudo a redescoberta de facetas radicalmente novas em si, incluindo as físicas.” (pág. 102)
A tranquilidade viu-se perturbada um ano depois quando, vítima de uma emboscada, Caim foi violentamente agredido em Monsanto até aceder  em pagar generosa comissão a uma mafia liderada por polícias no ativo.
Essa nova realidade tornara menos lucrativo o negócio, que se passara a limitar à casa da margem sul e doravante destinada a clientela menos abonada. A relação do casal também perdera fulgor, não gostando Caim de ver a amante a dar o corpo ao manifesto em noites de mais numerosa clientela.
Por essa altura do relato das suas aventuras, já Abel está a conduzir o grupo dos seus acompanhantes até ao Príncipe Real. É então que chega à parte em que Caim foi à Tailândia para aí se prover de novas meretrizes, mas tudo não passara de uma burla engendrada por Sara e um dos mafiosos para ali o abandonarem sem dinheiro sequer para regressar à Europa. Valera-lhe o encontro com o gigante Porfírio, que lhe deu a solução: embarcar como tripulante num navio com destino á Europa. As escalas por onde passaram são as das viagens dos tempos dos Descobrimentos, mas em sentido contrário, e com passagem pelo canal do Suez.
Porfírio também o ajudara a vingar-se dos traidores, quando chegaram a Lisboa, mas se Sara e o novo amante morreram, também o mesmo sucedera aos dois recém-chegados.  No dia do funeral, uma vez mais Caim dera por si sentado num banco do jardim do Lumiar.
Dois anos depois encontramo-lo na pele do mesmo Abel, que continua a contar a estória aos seus discípulos.  Tornara-se taxista em Belas, e qual Camões, enamorara-se de Leonor, que namorara em adolescente, quando frequentara a Praia das Maçãs.
Não adivinhava que um bíblico Isaías, já então profeta desempregado, anunciara a vinda de um “homem de várias vidas, o qual, parecendo estra morto, continua ainda vivo no seu corpo e espírito, cruzando mundos e o mais que a natureza e os deuses criadores desde o princípio interditaram”. (pág. 186)
O cerco em torno de Abel fora-se formando: do Egito um mágico de nome Mubarak anunciara que Adão não morrera, tendo-se convertido em Caim, primeiro, e Abel depois. E a própria Leonor - amiga de Luísa, a mulher com quem começara por ser casado numa anodina circularidade nos acontecimentos - acabara por lhe desmascarar o pseudónimo, pois, quer em particularidades físicas, quer na voz idêntica à de Adão enquanto cantor pimba, ele continuava a ser o mesmo.
Tendo fugido para Lisboa e contado toda a sua aventura aos doze acompanhantes, Abel cumpre o último momento do seu calvário, subindo aos céus em vistoso fogo-de-artifício com transmissão em direto pelas televisões.
Romance irónico ao tomar muitos dos atavismos do início do século XXI como alvo, «O Trevo de Abel» é um projeto ambicioso e inteligente, a exigir ao leitor uma concentração acima do comum se não quiser perder-se na riqueza sintática das suas férteis descrições.

Sem comentários: