segunda-feira, março 13, 2017

(DIM) A intimidade familiar segundo Woody Allen

Um dos começos mais famosos da História da Literatura é o de «Anna Karenine» em que Tolstoi diz que todas as famílias felizes se assemelham, mas as infelizes são-no cada uma à sua maneira. Tal ilação está bem demonstrada na família de «Intimidade» (1978) com a qual Woody Allen rodou o primeiro dos seus seis filmes dramáticos, entre dois dos maiores sucessos de uma vasta filmografia com cerca de cinquenta títulos: «Annie Hall» (1977) e «Manhattan» (1979). É também o primeiro em que ele não aparece como ator.
Na época toda a crítica elogiou o filme como uma homenagem óbvia a Ingmar Bergman, embora Woody Allen tenha referido o quanto ele deve às obras do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill. Haverá, igualmente, quem note algo do universo de Anton Tchekov, nomeadamente nas suas peças «As Três Irmãs» e «O Tio Vânia».
Os caminhos de cruzamento com o realizador sueco também se situaram a um outro nível: o papel de Eve foi escrito para Ingrid Bergman mas a atriz, já comprometida com a «Sonata de Outono» do outro Bergman, declinou o convite vendo-se substituída por Geraldine Page. Curiosamente uma e outra seriam candidatas a melhor atriz principal nos Óscares do ano seguinte, tendo perdido o prémio para Jane Fonda, que interpretara «Regresso do Herói» sobre as consequências familiares da guerra do Vietname.
Tratava-se, pois, de uma época propícia à abordagem das disfuncionalidades dentro das famílias e Allen mostrava como não bastava ter uma qualidade de vida desafogada para se comprar a felicidade. A crise acontecera quando Arthur decidira abandonar a mulher que muito o amara, e arcara com os sustento da família enquanto ele acabara a Universidade, trocando-a por uma rival, sua verdadeira antítese.
Eve que fora uma bem sucedida decoradora de interiores  fora perdendo sucessivamente os clientes e tornara-se numa esposa neurótica. O abandono do marido atirara-a para a depressão, os internamentos em hospitais psiquiátricos e, enfim, a morte.
O filme inicia-se, quando a separação já acontecera há algum tempo e Eve ainda vive a esperança de uma impossível reconciliação. Renata, a primogénita das três filhas, alimenta-lhe a ilusão, mesmo dela descrendo, vendo-se atacada por Joey, a irmã do meio, que não se chega a perceber se reage por convicção se pelo despeito de ver aquela ter o sucesso literário que ela, enquanto escritora não conseguira.
Estamos numa família onde a cultura importa e alimenta conversas sofisticadas, quase sempre entediantes na presunção de quem se parece masturbar com a invocação de referências artísticas.
Flyn, a filha mais nova, que vem do outro lado do continente, é a única a não alinhar nesse tipo de conversas, mas o facto de ter uma carreira mediana como atriz nas novelas televisivas produzidas em Hollywood, conferem-lhe uma imagem de futilidade, que retoma o tema do filme anterior: a Costa Leste, e sobretudo Nova Iorque, era o feudo da intelectualidade mais requintada, ao contrário da vulgaridade do que se produzia em Los Angeles.
Quem servirá verdadeiramente de contraponto ao esnobismo da família é Pearl, que só conhecemos na segunda metade do filme: personagem de rutura, ela é-o até na forma como se veste. As cores claras, a assumida alegria de viver, contrastam com o cinzentismo e as angústias das futuras enteadas.
Existe, pois, uma crítica explicita a uma camada social com tiques aristocráticos, que parece comprazer-se com a vocação para ser infeliz.
Tendo-se tornado num dos filmes mais mal amados do realizador, atentemos ainda assim na audácia com que Allen filma as belas paisagens invernosas sem presença humana, facilmente associáveis ao abstracionismo.

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