quarta-feira, março 22, 2017

(DIM) «Outra Mulher» de Woody Allen (1988)

Na segunda metade da década de oitenta o percurso de Woody Allen ia alternando entre meritórios sucessos junto da crítica e do público («Rosa Púrpura do Cairo» em 1985 e «Ana e Suas Irmãs» em 1986) e clamorosos fracassos - «September» e «Radio Days» - que lhe dificultavam o financiamento de novos projetos.
Ele concetualizou «Outra Mulher» como tentativa de superar essa bipolaridade, embora já tivesse em atenção as reações muito positivas dos festivais e dos mercados europeus. Talvez por isso não tenha sido inocente a escolha de Gena Rowlands para protagonizar este filme, porquanto vivia-se na altura um grande interesse pela filmografia de John Cassavetes deste lado do Atlântico. E muitos desses títulos contavam com a sua indispensável participação.
A escolha não podia ser mais afortunada: um dos motivos para «Outra Mulher» ser um grande filme é pelo desempenho da atriz. Os grandes planos evidenciam-lhe o enorme talento de, pelas expressões do rosto, denunciar a progressão dos estados de alma. Porque o que está em causa é a súbita descoberta que Marion faz de si mesma, concluindo que chegara a quinquagenária sem verdadeiramente se conhecer. Mais ainda: apesar de ter uma vida social bastante preenchida, sente-se só e vazia.
É, igualmente, o filme em que Woody Allen melhor concretiza a homenagem ao sueco Ingmar Bergman: se havíamos visto que «Intimidade» já refletia essa intenção, ainda era possível aperceber a presença óbvia das peças de Eugene O’Neill ou de Anton Tchekov.
Aqui, pelo contrário, a referência maior é a de «Morangos Silvestres», com uma personagem chegada a idade madura a concluir como o sucesso profissional escondera o doloroso fracasso sentimental.
Existe, igualmente, a presença da psicanálise, porque Marion fará uma terapia por procuração através dos relatos de Hope, a paciente do consultório de que se tornara vizinha, quando alugara um apartamento com o isolamento necessário para a concretização do seu livro seguinte.
Igualmente elucidativo, é tudo começar quando estava a dormir e regressara à vigília ao som da voz dessa mulher com nome de esperança, e cuja depressão e gravidez, direciona a involuntária ouvinte para sucessivos regressos ao passado. Reencontra, assim, o irmão que vampirizara e a passara a invejar. Ou o primeiro marido a quem recusara dar um filho, porque lhe importava bem mais o sucesso literário, e o vira por isso suicidar-se. Ou a antiga amiga a quem roubara o amor de quem ela tanto ansiava, tratando-o depois como negligente amante.  Ou ainda o marido, que a engana, talvez para lhe cobrar a frieza com que ela lhe reage.
À medida que escuta Hope e revisita os tempos idos, Marion constata até que ponto sempre vivera na negação, na mentira. Vêm então à colação os poemas de Rilke, que tanta haviam sido prezados pela mãe, tão precocemente desaparecida. E eles dão-lhe o alento para ressurgir, para começar de novo e fazer com que o resto da vida viesse a valer a pena.
Uma referência final pra outra presença bergmaniana no filme: Allen foi buscar a Bergman o seu diretor de fotografia, Sven Nykvist, que colheu como ninguém as imagens alaranjadas do outono.

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