terça-feira, março 21, 2017

(DIM) «SÃO JORGE», o lapidar retrato do austericídio

Até ver «São Jorge» considerava que os filmes mais representativos sobre o período vivido sob a tutela da troika eram os que Miguel Gomes rodou na trilogia das «Mil e Uma Noites».  Afinal, após a experiência proporcionada pelo título de Marco Martins, a escolha passou a ser esta.
É que, enquanto Miguel Gomes optou pela ironia, quando não mesmo pelo sarcasmo,  o realizador de «Alice» decidiu proporcionar-nos um murro bem certeiro ou não escolhesse para protagonista Nuno Lopes no papel do boxeur contratado para as cobranças difíceis. Quem entra no cinema para ver este filme, esqueça a intenção de se entreter, porque tem garantido o retrato quase insuportável do Portugal, que só o atual governo, começou a deixar para trás.
Mergulhamos, pois, no Portugal desgovernado por Passos Coelho. As fábricas fecham, os salários atrasam-se, as famílias ficam sem sustento, endividando-se muito para além dos limites das suas possibilidades. E há quem aproveite para lucrar com tanto desespero, exigindo pagamentos que se tornaram impossíveis de satisfazer.
Não admira que o suicídio acabe por se tornar na definitiva solução de quem não vislumbra mais nenhuma. Estará, aliás, por conhecer a verdadeira dimensão de tal drama nesse período: quase todos esses mortos deverão contar para o passivo do austericídio, que as direitas impuseram aos mais pobres e às classes até então tidas como remediadas.
As relações amorosas tornaram-se impossíveis porque não encontraram recato bastante para ganharem asas, tanto mais que o abjeto racismo  interpunha-se como obstáculo intransponível.
A exemplo do pai de Alice, que percorria uma via sacra na procura da filha desaparecida, Jorge move-se incansavelmente por paisagens suburbanas, tentando sair do labirinto em que se vai vendo cada vez mais perdido. Vagueia por campos de ruínas, como se tivesse sido a guerra das armas, e não a económica, a causar tanta devastação.
Os anos da troika foram de tal desespero, que os operários até se propunham trabalhar mais horas por menos dinheiro, mas de que servia esse amouxar se as encomendas quase desapareceram? O que o filme dá a ver é um país parado, sem rumo e com quase todos mergulhados na aflição.
O comportamento das muitas empresas fundadas nesses anos para conseguirem reaver as dívidas incumpridas é o expectável: a pressão constante, mesmo junto da família ou dos vizinhos das vítimas do seu assédio. E, mesmo que ilegal, o recurso à violência torna-se regra, quando não se consegue recuperar o que quer que seja dos bolsos virados e revirados dos que já nem sequer têm meios para sobreviver.
Nas entrevistas alusivas ao filme Nuno Lopes chegou a revelar o quanto lhe custava chegar aos locais de rodagem no bairro da Bela Vista em Setúbal ou no Jamaica do Seixal, e deparar com quem já nada comia há uma semana.
É isso que nunca poderemos perdoar a Passos Coelho e a Paulo Portas: no afã de alcançarem os seus objetivos a coberto da troika, não só viraram ostensivamente as costas a quem neles votara na esperança de serem solução para o infortúnio, como se comprazerem em servir-lhes de algozes.


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