segunda-feira, setembro 29, 2025

Crítica à glorificação da violência

 

O escritor alemão Erich Maria Remarque tem-me aparecido ultimamente em documentários televisivos, um deles recordando as circunstâncias em que escreveu "A Oeste Nada de Novo", outro abordando a relação amorosa com Marlene Dietrich.

Numa altura em que a estupidez europeia parece guiar o continente para a guerra, com Trump todo pimpão a imaginar os milhões de dólares a faturar com a venda de armamento aos "aliados" deste lado do Atlântico, talvez valha a pena trazer de volta o romance de Remarque e recordar a relação com a conhecida atriz. Mais do que uma mera curiosidade histórica, estas duas facetas do homem – o autor de um dos maiores libelos antiguerra de sempre e o amante de uma ícone de Hollywood – representam as duas faces de uma mesma moeda: a busca desesperada por humanidade após ter sido esmagado pela engrenagem da História.

"A Oeste Nada de Novo" não é apenas um livro sobre a guerra. É a crónica de uma desilusão. Remarque, ele próprio veterano ferido na Frente Ocidental, não nos fala de heróis ou de glória, mas da fome, do medo, da camaradagem forjada no lodo e do esmagamento de uma geração inteira que, como escreveu, "foi destruída pela guerra – mesmo que tivesse escapado às suas granadas".

A prosa clínica e emotiva arrancou a guerra das mãos dos estrategas e dos políticos e devolveu-a aos jovens que a sofreram. O sucesso foi avassalador, mas também o ódio que despertou. Os nazis, compreendendo perfeitamente o perigo de uma verdade tão nua, queimaram o livro e retiraram a cidadania alemã a Remarque em 1938. Ele tornou-se um homem sem pátria, um exilado, precisamente por ter dito a verdade sobre o que a pátria exige dos seus filhos.

E é aqui que a sua relação com Marlene Dietrich se entrelaça com o seu legado literário. Quando se conheceram, nos anos 40, ambos eram exilados na América, desenraizados pela mesma catástrofe europeia. Ele, o escritor seriamente marcado pela guerra; ela, a diva glamorosa, mas também uma alemã que detestava o regime nazi. O seu caso foi intenso, torturado e, no fundo, impossível. Nas cartas apaixonadas e desesperadas que trocaram, vê-se a solidão de dois refugiados que nunca se livraram do fantasma da guerra. A relação deles foi um refúgio, um tentativa de encontrar, no amor privado, um sentido que o mundo público lhes tinha roubado. Mas tal como a paz na Europa se mostrou frágil, também o idílio não durou. Eram ambos demasiado feridos para se salvarem um ao outro.

Voltar a Remarque hoje, quando os tambores da guerra soam de novo com uma familiaridade perturbante, é um antídoto necessário. É lembrar que por trás das retóricas belicistas, das transações de armas e dos mapas estratégicos, estão os Paul Bäumers – os jovens que são a "matéria-prima" da história. A obra é um aviso severo contra a glorificação do conflito e a desumanização do "inimigo". E a vida, marcada pelo exílio e pela busca de amor num mundo em ruínas, é um testemunho do custo duradouro da violência.

Num presente onde a linguagem política se volta a encher de soberania e de confronto, a devastadora humanidade de Remarque urge ser lida. Não como uma relíquia do passado, mas como um espelho. Porque a maior estupidez seria esquecer as lições que ele nos transmitiu.

 

quinta-feira, setembro 25, 2025

“José Fonseca e Costa, a luz no olhar” de Paulo Adrião (2012): a feliz revisão da matéria dada

 

Dos cineastas portugueses, e pese embora o muito que gosto dos filmes de João César Monteiro ou do Manoel de Oliveira, o José Fonseca e Costa é o que mais aprecio. Embora reconheça alguns falhanços significativos e, nalguns casos, imerecidos ("Os Demónios de Alcácer Quibir"), não lhe faltou a coragem e a determinação em mostrar o fascismo na sua faceta sinistra. Foi, aliás, por "O Recado", que entrei na sua obra e, desde então, fiquei seu fiel espetador.

Foi, pois. com um particular interesse que revi este documentário sobre a sua figura, por permitir a compreensão da sua dimensão humana e artística. A opção por Paulo Adrião revela-se acertada: em vez de um olhar de dentro do círculo íntimo, temos a perspetiva de um cineasta que, com o distanciamento necessário e um profundo respeito, se dedica a um meticuloso trabalho de arquivo e de composição.

O documentário de Adrião destaca-se pela estrutura clara e abrangente, traçando o percurso de Fonseca e Costa desde os tempos de crítico e de figura central na Cinemateca até à sua carreira como realizador. Através de um valioso conjunto de depoimentos do próprio e de colaboradores próximos, o filme consegue harmonizar as duas facetas do cineasta que tanto aprecio: o corajoso crítico do regime fascista com obras políticas e densas como "O Recado", e o contador de histórias sensível, que explorou o humor e a sensualidade em filmes como "Kilas, o Mau da Fita".

A abordagem de Paulo Adrião permite que a obra de Fonseca e Costa seja o centro das atenções, sem filtros excessivamente subjetivos. O resultado é um retrato sólido e informativo, uma homenagem séria e bem construída que permite reencontrar o cineasta na totalidade da sua obra e legado, confirmando a razão porque persiste uma referência importante no cinema português.

quarta-feira, setembro 24, 2025

“O Último Voo dos Flamingos” de João Ribeiro (2010): da página ao ecrã

 

Tarefa difícil o do cineasta que se atreva a adaptar para o cinema o universo narrativo de Mia Couto. Se a paisagem moçambicana o pode ajudar, bem como o imaginário das suas gentes, é impossível traduzir em fotogramas a magia de uma linguagem, principal matéria usada pelo escritor para gerar singular sortilégio em quem o lê. Por isso, na questão de qual resulta melhor, o livro ou o filme, o cineasta, fadado para tal tarefa, sai sempre a perder.

Contudo, João Ribeiro assumiu o desafio com coragem e sensibilidade. Em “O Último Voo dos Flamingos” o realizador não tentou competir com a prosa poética de Mia Couto, mas encontrar uma linguagem cinematográfica própria que honrasse o espírito da obra original. O resultado é um filme que, longe de trair o romance, estabelece com ele um diálogo respeitoso e criativo.

A história, situada numa aldeia moçambicana onde soldados das Nações Unidas explodem misteriosamente, mantém no filme toda a sua força alegórica. Ribeiro soube captar a essência do realismo mágico coutiano, capacidade única de fazer coexistir o quotidiano e o fantástico, o político e o poético. As imagens da savana africana, filmadas com uma beleza contemplativa, tornam-se cúmplices desta atmosfera onde o inexplicável ganha naturalidade.

O realizador conseguiu preservar a crítica social do romance. A presença dos capacetes azuis, as tensões pós-coloniais, o choque entre modernidade e tradição – tudo isto surge no filme sem didatismo, através de uma narrativa que privilegia a sugestão sobre a explicação. É nisto que Ribeiro mais se aproxima do estilo de Mia Couto: na capacidade de depuração, de fazer pensar através da emoção.

Naturalmente, algumas das nuances linguísticas do escritor moçambicano perderam-se na transposição. As invenções lexicais, os jogos de palavras, a musicalidade da prosa – elementos centrais na obra de Mia Couto – resistem à tradução visual. Mas o filme compensa estas perdas com outras descobertas: a fotografia evocativa, uma banda sonora que mistura tradição e contemporaneidade, interpretações que captam a humanidade complexa das personagens.

“O Último Voo dos Flamingos” cinematográfico não substitui a experiência da leitura, nem o pretende. Antes propõe uma experiência complementar, um outro olhar sobre o mesmo universo poético. João Ribeiro compreendeu que adaptar Mia Couto não significava reproduzir fielmente cada página, mas sim encontrar equivalências cinematográficas para a sua visão do mundo.

O filme funciona assim como uma homenagem inteligente, que reconhece as limitações do meio cinematográfico face à riqueza verbal do original, mas soube descobrir as próprias potencialidades expressivas. É esta honestidade criativa que faz de “O Último Voo dos Flamingos” um diálogo interessante com a versão literária. Ambos coexistem sem se anularem mutuamente. Cada um oferece a sua perspetiva sobre um Moçambique onde o real e o mágico se entrelaçam, onde a História se escreve também através dos pequenos gestos e silêncios eloquentes. E nisso, pelo menos, tanto Mia Couto como João Ribeiro saíram vencedores. 

terça-feira, setembro 23, 2025

“Banda Sonora para um golpe de Estado” de Johan Grimonprez (2024) o urânio da Guerra Fria e a sombra de Lumumba

 

O assassinato de Patrice Lumumba em 1961 não foi o resultado de um mero conflito interno; foi o ponto final de uma conspiração ocidental meticulosamente orquestrada. O Congo, com a sua vasta riqueza mineral, incluindo as minas de urânio que abasteceram o programa nuclear americano, era demasiado valioso para que o seu destino fosse entregue a um líder nacionalista e independente.

O medo de que Lumumba, na sua luta por um Congo verdadeiramente soberano, pudesse virar-se para a União Soviética em busca de apoio foi a justificação perfeita para Washington e Bruxelas. Assim, as agências de espionagem, com a CIA na linha da frente, lançaram uma operação de desestabilização para derrubar o homem que eles consideravam uma ameaça à ordem global estabelecida e ao seu acesso aos recursos congoleses.

Neste cenário de espionagem e violência, a música negra foi utilizada de forma cínica pelo Departamento de Estado dos EUA, com músicos como Louis Armstrong, foram enviados em digressões globais como "embaixadores do jazz", uma estratégia de "poder suave" para contrapor à propaganda soviética. A ideia era mostrar ao mundo a liberdade e a diversidade cultural americana, mesmo quando os EUA tinham o racismo e a segregação em casa.

No entanto, o documentário revela que esta digressão era mais do que uma simples missão diplomática. A presença de Armstrong no Congo em 1960 serviu como uma "banda sonora" para o golpe de estado, uma distração que coincidiu com os últimos meses de vida de Lumumba. O carisma e a inocência pública de Armstrong foram um "cavalo de Troia", desviando as atenções enquanto a CIA e os seus aliados conspiravam para neutralizar Lumumba.

O próprio Armstrong só terá percebido mais tarde o papel que desempenhou neste enredo, o que o deixou furioso por ter sido utilizado. O seu caso é um exemplo trágico de como uma força cultural de libertação pode ser cooptada por poderes que buscam o seu oposto.

Este paradoxo é ainda mais evidente no caso de Dizzy Gillespie. Ao contrário de Armstrong, ele tinha uma consciência do seu papel. Ele não era ingénuo, mas um participante crítico, usando a sua posição para questionar as contradições americanas e o seu próprio papel no jogo da Guerra Fria. A campanha presidencial satírica, que protagonizou em 1964, embora humorística, foi uma crítica direta ao sistema político, demonstrando que a música negra não era apenas uma ferramenta passiva, mas também uma força de resistência e de crítica.

Em última análise, o documentário "Banda Sonora para um golpe de Estado" expõe um dos capítulos mais sombrios da Guerra Fria. Mostra como o Ocidente usou todos os instrumentos ao seu dispor, de manobras políticas a conspirações clandestinas, para derrubar um líder. O facto de a música negra, uma forma de arte nascida da luta pela liberdade, ter sido utilizada para pavimentar o caminho para a morte de Lumumba é a tragédia central e a ironia máxima desta história. 

segunda-feira, setembro 22, 2025

“Manhattan” de Woody Allen (1979): Nova Iorque como poesia visual

 

São vários os filmes de Woody Allen, que posso recordar como do meu agrado. “Manhattan” é decerto um deles. Porque gosto do preto-e-branco, da música de Gershwin, dos diálogos inteligentes e de alguns dos que o interpretam. Daí seja razão mais do que suficiente para o rever sempre que posso. Porque há qualquer coisa de mágico na forma como Allen transforma Nova Iorque num poema visual. A cidade não é apenas pano de fundo — é personagem, é atmosfera, é estado de espírito. O preto-e-branco, longe de ser uma escolha nostálgica gratuita, confere à narrativa uma elegância melancólica, como se estivéssemos a ver memórias em movimento. Cada plano parece cuidadosamente composto para nos fazer sentir que estamos a viver dentro de uma fotografia antiga, mas viva.

E depois há Gershwin. A sua música não acompanha o filme — define-o. “Rhapsody in Blue” abre “Manhattan” com uma sequência que é uma das mais belas da história do cinema. A cidade acorda ao som de uma sinfonia que mistura caos e beleza, como se Allen dissesse: “Isto é Nova Iorque. Isto é o que sinto por ela.” E nós sentimos também.

Mas o que me prende verdadeiramente ao filme são os diálogos. Inteligentes, sarcásticos, por vezes dolorosamente honestos. A conversa entre Isaac e Mary junto à ponte, de madrugada, é um desses momentos que ficam. Não há efeitos especiais, não há dramatismos exagerados — apenas duas pessoas a tentarem encontrar sentido numa relação, numa cidade, numa vida. E é nesse minimalismo emocional que “Manhattan” brilha.

Isaac, com as suas neuroses e contradições, é um espelho imperfeito de todos nós. Quer amar, mas não sabe como. Quer ser honesto, mas mente a si próprio. E Tracy, a jovem que ele tenta afastar por medo ou convenção, acaba por ser a mais lúcida de todos. Há uma ternura silenciosa nessa relação que comove sempre que revejo o filme.

“Manhattan” não é apenas um filme que gosto — é um lugar onde volto. Um lugar onde a beleza encontra-se na dúvida, na música, na luz difusa de uma ponte sobre o Hudson. E talvez seja isso que justifica cada regresso: a promessa de que, mesmo num mundo confuso, há momentos que valem a pena. 

domingo, setembro 21, 2025

A Farsa de Ivan Ilitch

 

Aos quarenta e cinco anos, Ivan Ilitch percebe algo de terrível: a alegria da sua vida inteira foi uma mentira. Deitado no leito de morte, ele olha para a sua existência – uma carreira de sucesso, uma família "perfeita", uma casa elegante – e vê uma farsa. A única coisa real que lhe resta é a dor e o medo. Tolstoi, o autor da novela, oferece a sua solução: uma vida ancorada em valores espirituais e morais. Mas e se a resposta não estiver aí?

A verdade é que a minha diverge da de Tolstoi. Como materialista, os valores espirituais não me dizem nada, e os morais, muitas vezes, parecem eivados de preconceitos, usados para julgar e proibir. A novela, apesar de brilhantemente escrita, propõe uma solução que pode não ser universal.

A questão não é seguir os preceitos de Tolstoi, mas refletir sobre o que teria sido mais relevante. Olhando para trás, pergunto-me: poderia ter sido mais feliz?

Talvez sim. Ao longo da vida, os compromissos profissionais e sociais desfocaram-me muitas vezes do que realmente importa, o amor partilhado com a pessoa que está ao meu lado há mais de meio século. E é aqui que a minha leitura se cruza com a de Tolstoi, mas toma um caminho completamente diferente. O vazio de Ivan Ilitch não era apenas a falta de valores espirituais, mas a ausência de elo genuíno e de foco nas relações humanas mais importantes.

É inútil, porém, olhar para o passado à procura de "tempo perdido". Irene Lisboa já o dizia no título de um dos seus livros: para que serviria voltar para trás? Embora esse romance mais não fosse do que isso mesmo.

Ivan Ilitch não me inspira simpatia. Ele é, no fundo, um homem comum que percebeu o valor da vida quando já era tarde demais. A novela de Tolstoi não é um manual de como viver, mas um espelho que reflete uma vida mal direcionada.

O que a história ensina é que a vida autêntica não está em seguir preceitos religiosos ou morais abstratos, mas  em valorizar o amor e as relações pessoais. E essa é, talvez, a maior lição que a obra de Tolstoi, mesmo para quem discorda dele, pode dar-nos: a oportunidade de refletir sobre o que realmente importa antes que seja tarde demais.

sábado, setembro 20, 2025

A bandeira e o silêncio

 

A imagem mostra uma figura solitária, envolta pelo vento e pela vastidão, segurando uma bandeira que se agita como se quisesse falar por todos os silenciados. Há beleza na composição — o contraste entre o tecido escuro e o céu difuso, o corpo firme e o olhar perdido no horizonte. É uma conhecida fotografia Tina Modotti: estética rigorosa, geometria emocional, e uma mensagem que não grita, mas ressoa.

Modotti nunca separou o belo do justo. Para ela, a arte não era ornamento, mas instrumento. Mesmo nas fotografias mais militantes — camponesas mexicanas com rostos marcados, mãos calejadas segurando ferramentas ou flores — há uma composição cuidada, uma luz que dignifica, uma forma que eleva. A beleza, para Tina, era uma forma de resistência.

Nascida em Údine, Itália, em 1896, Tina Modotti emigrou jovem para os Estados Unidos, onde começou como atriz e modelo. Mas foi no México, ao lado do fotógrafo Edward Weston, que encontrou a linguagem visual e política. Ali, entre muralistas como Diego Rivera e revolucionários como Julio Antonio Mella, Tina tornou-se mais do que artista: tornou-se combatente.

A câmara passou a ser uma arma de solidariedade. Fotografou mulheres indígenas, operárias, mães — não como vítimas, mas como protagonistas. A obra é um testemunho da dignidade dos oprimidos, especialmente dessas mulheres, cuja força ela captava com uma sensibilidade que misturava ternura e firmeza.

Militante comunista, Tina envolveu-se em causas internacionais, da Revolução Mexicana à Guerra Civil Espanhola. Foi perseguida, exilada, vigiada. Mas nunca deixou de acreditar que a arte podia ser revolucionária — não por panfletária, mas por humana.

Em 1942, Tina Modotti morreu subitamente num táxi na Cidade do México. A causa oficial foi um ataque cardíaco. Mas muitos, incluindo amigos próximos, suspeitaram de algo mais sombrio. Ela vivia sob vigilância, num clima de paranoia política. A sua morte, como a de Pablo Neruda quarenta anos depois, levanta dúvidas que talvez nunca se dissipem.

O poeta chileno, que a conheceu e admirou profundamente, escreveu-lhe um epitáfio comovente:

Tina Modotti, irmã, não dormes, não estás morta: estás no coração de todos os que lutam.

E assim permanece. Entre bandeiras que se agitam ao vento e olhares que desafiam o horizonte, Tina Modotti continua a ser uma presença — estética, ética, eterna.