quinta-feira, julho 07, 2016

(DIM) «Dia de cólera» de Carl Dreyer (1943)

O que terá levado Carl Dreyer a rodar este filme, quando vivia sob a Ocupação nazi? A metáfora ao poder discricionário do invasor foi tão óbvia que, temendo represálias, o realizador logo atravessou o estreito de Øresund, deixando-se ficar como refugiado em terras suecas até ver Copenhaga libertada.
Logo na primeira legenda fica enunciada essa conjuntura política: “Dia de cólera, a negra noite cobrirá os confins da Terra e o Sol dará lugar às trevas”. Estamos, porém, em 1623, quando Marthe Herlofs é acusada de bruxaria e procura esconder-se em casa de Anne, a jovem esposa do pastor Absalon. Amiga da mãe dela, que já morrera na fogueira, tenta agora que a rapariga interceda junto do marido, que tem um ascendente carismático sobre os demais juízes da cidade.
Os perseguidores acabam por encontra-la ali e levam-na para ser martirizada até confessar o seu pacto com o demónio. Quando se apanha a sós com Absalon, Marthe tenta salvar-se mediante a chantagem, ameaçando denunciar Anne, acaso ele a não salve, mas acaba por morrer na fogueira, prometendo a morte próxima para os que a terão acusado e condenado.
Em casa Anne é alvo do ódio da sogra, que está decidida a livrar-se da sua presença. Ora ela facilita-lhe a vida ao enamorar-se do enteado, o jovem Martin, que acaba de regressar a casa depois de morosa ausência. Retribuída nessa paixão, Anne entrega-se descuidadamente a ela sem adivinhar o quanto isso se lhe revelará fatal.
Numa noite de grande tempestade, Absalon é chamado para acompanhar os últimos momentos de vida do pastor Laurentius, que lembra, no seu estertor, as palavras de Marthe na fogueira. E, já no regresso a casa, Absalon sente a morte a tocar-lhe a pele a coberto da ventania, contra que investe.
Por essa altura estava Anne deitada no peito de Martin a imaginar o quanto poderiam ser felizes se ela enviuvasse. Mas ele relativiza-lhe as palavras, que não passam da manifestação de um sonho irrealizável.
Apanhando-se a sós com Absalon, Marthe confessa já ter-lhe desejado a morte dele milhentas vezes, ademais agora que tem o amor de Martin para usufruir. Siderado o velho pastor cai morto no chão.
Claro que há muito que adivinhamos para onde evoluirá a história: acusada pela sogra e sentindo o enteado afastar-se dela com horror, Anne confessa à cabeceira do morto, que fez, de facto, um pacto com o diabo e é uma bruxa merecedora do castigo.
Bastante austero no seu preto-e-branco, o filme de Dreyer, quase sempre rodado em interiores,  testemunha uma época de grande desespero por quem acreditava na possibilidade de Hitler ter razão, quando prometia um império por mais mil anos.
Afinal dois anos depois o seu cadáver carbonizava num bunker de Berlim. Depois de assassinar tanta gente nos crematórios de Auschwitz Birkenau, ele próprio reduzir-se-ia a pouco mais do que cinzas…
Quase três quartos de século decorridos desde a sua concretização o filme de Dreyer vale pela estética irrepreensível e pela demonstração de que, depois de anos de trevas, haverá sempre uma janela aberta, une fenêtre éclairée!

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