sexta-feira, novembro 22, 2019

Diário das Imagens em Movimento: Três filmes que nenhum prazer proporcionam


Às vezes é um bocado difícil gostar do cinema português. Foi esse o meu pensamento à medida que ia vendo «Ponto Morto», uma curta metragem de André Godinho realizada em 2014 e reconheça-se que visualmente interessante. Mas que dizer dos tiques godardianos a respeito da morte do cinema? Ou do labirinto borgesiano, que leva um carro a andar às voltas numa estrada durante a noite repetindo as passagens pelo mesmo sítio? Ou a transformação dos cadáveres em zombies deambulando por um cenário de minas abandonadas e com charcos poluídos com mercúrio ou outro qualquer poluente?
Repito: esteticamente até é agradável de ver, mas o que queria o realizador para além da demonstração da sua erudição? Para que serve, afinal, um filme assim senão para onanísticos exercícios de efabulação nos festivais de cinema em que foi apresentado?
Igualmente preferencialmente destinado ao circuito dos festivais, mas com distribuição alargada por cinemas dos vários continentes, o documentário «Projeto Nim» de James Marsh poderia ser ferramenta eficiente do PAN para as suas campanhas sobre os direitos devidos aos animais. Nim é um pobre macaco, logo em bebé subtraído à progenitora para servir de cobaia ao projeto de investigação de um professor da Universidade de Columbia apostado em aferir se, sem aparelho vocal para falarem como os humanos, os macacos poderiam aprender linguagem gestual.
Sem cuidar do bem estar do primata Herbert Terrace (fisionomicamente sósia do ditador turco Erdogan e ainda sua réplica ainda mais óbvia na falta de escrúpulos!) retira Nim da casa onde começou por ser integrado numa família muito assertiva às suas necessidades, transferindo-o para uma mansão onde acaba por concluir que está a gastar grandes somas sem resultados condizentes com as expetativas decidindo devolver Nim à procedência, ou seja ao abrigo donde o retirara, mas onde ficaria doravante encafuado em gaiolas de dimensões reduzidas.
Pior ainda sucederia, quando o proprietário dessa associação declarou falência vendendo os animais aí «armazenados» a um laboratório para neles serem feitas experiências com novos medicamentos.
Terrace, que já se revelara um escroque apenas interessado em Nim conquanto ele lhe prodigalizasse publicidade, nunca mais dele quererá saber, mesmo ciente de como lhe dera a conhecer o paraíso antes de o sujeitar a tal inferno.
Felizmente que os últimos anos de Nim serão passados numa espécie de purgatório em que, já não usufruindo das mordomias da infância, pôde voltar a usufruir daquilo que para os chimpanzés é tão importante: a sociabilidade com outros da sua igualha.
Igualmente destinado ao circuito de festivais, conseguindo até o Prémio do Júri da secção «Un Certain Regard» no Festival de Cannes de 2017, foi o filme «As Filhas de Abril» de Michel Franco, particularmente incómodo de ver na sua segunda metade, quando compreendemos termos sido iludidos pelo realizador para uma leitura da história, que nada tinha a ver com a realidade.
A princípio ainda julgámos que April tinha acorrido a Puerto Vallarta para apoiar a filha que, grávida aos dezassete anos, está manifestamente impreparada para os desafios inerentes à experiência de maternidade. Ademais o namorado, Matteo, está no mesmo nível de maturidade não contando sequer com a ajuda dos pais, que o expulsam de casa. Mas April vem a revelar-se uma personagem maléfica, que não só rouba a criança à filha como aspira a ganhar de bónus o rapaz na sua cama.
Ao contrário das explicações dadas pelo realizador quanto a tratar-se do retrato de três gerações de mulheres não é essa a leitura que se retira do filme. Nele ninguém sai verdadeiramente incólume de um juízo negativo que vamos formulando em relação a todos os personagens: April é perversa e egoísta; Valéria mostra-se infantil na teimosia em ter levado até ao fim uma gravidez para que não estava talhada; Matteo é do tipo da maria vai com as outras, nunca mostrando vontade própria, sempre se deixando arrastar para aquilo que a jovem namorada ou a balzaquiana amante o impelem; a meia-irmã de Valeria é uma anafada solteirona, nem sequer dotada para o papel de tia, porque lhe falta a vontade para se fazer diferente da abúlica existência em que se frustra. Os pais de Matteo ou o de Valeria não querem chatices com os filhos, vivendo as medíocres existências sem deles se condoerem.
Tudo aquilo parece uma telenovela grotesca sem beleza nem pingo de ética. A família é apresentada como um cenário de guerra escondido nas aparências de uma hipócrita fachada. Apenas se deve reconhecer a fotografia cuidada reveladora de competências técnicas superiores às das mundividências de um realizador, cujo olhar sobre a realidade está nos domínios do sórdido.

quarta-feira, novembro 20, 2019

Diário das Imagens em Movimento: Uma grande retrospetiva com os filmes de Hong Sang-soo


Na noite de 3 de dezembro a Cinemateca inicia a retrospetiva completa da obra do realizador sul-coreano Hong Sang-soo, distribuindo a apresentação das suas 23 longas-metragens por todo esse mês e o seguinte. Teremos assim acesso a uma obra original iniciada em 1996 com «O dia em que um porco caiu ao poço» e  iremos até ao mais recente título - «Hotel à beira do rio» - datado do ano transato.
A opção dos programadores foi a de respeitar a ordem cronológica com exceção de «Conto do Cinema» (2005) - o título que inicia o ciclo e cuja seleção fica justificada por ser aquele em que  recorre pela primeira vez a uma das suas principais características: o recurso ao zoom - ferramenta então há muito prescindida pelos cineastas! - para ele forma expedita de ligar os sucessivos planos-sequência em que explicita os enredos.
Outra das características mais surpreendentes do seu cinema tem a ver com o método de trabalho, que dispensa o argumento, substituído por reuniões prévias com os atores a quem atribui as linhas gerais da história e com quem ensaia as cenas a rodar nesse mesmo dia, nomeadamente os enquadramentos, que deles colherá. Os orçamentos são baixos e adaptam-se às contingências, mormente meteorológicas, de cada dia de trabalho, que acabam por integrar o relacionamento entre os personagens.
Numa entrevista ele explica que os seus filmes “não são feitos para contarem uma história mas para representarem fragmentos dela. Pego nesses ‘fragmentos’ e é deles que deriva toda uma estrutura centrada em situações quotidianas. Escolho a retórica adequada no interior dessa estrutura. E quando chego à rodagem começa um novo processo de descoberta.”
Nesse «Conto de Cinema» encontramos Songwon, um estudante universitário sem nada que fazer desde que concluiu os exames finais. Reencontra uma antiga namorada, Yongsil, numa loja de oftalmologia, mas duvida se irá ter com ela quando sair de serviço, entretendo-se até lá numa peça de teatro em que as personagens ecoam palavras, que se lhe ajustarão quando falhar na tentativa de se precipitar do telhado do prédio onde vivem os pais.
Noutro capítulo deparamos com Tongsu, um cineasta obcecado com a curta-metragem realizada por um colega de turma e, sobretudo com a atriz, que a protagonizara, imitando-lhe os gestos e revisitando os lugares da rodagem para aferir a sua própria imagem por ela suscitada.

domingo, novembro 17, 2019

Diário de Leituras: Assistimos à maior extinção em massa desde o fim dos dinossauros


No primeiro texto da recolha de ensaios intitulada «O fim do fim da terra», o escritor norte-americano Jonathan Franzen considera vivermos num tempo de excessiva valorização do Eu, de tal forma que a única forma de narrativa defensável parece ser a autobiografia. Um amigo que conhecera quando iniciara funções de jornalista no «The New Yorker» dera-lhe dois preciosos conselhos a contracorrente de tal tendência: “qualquer ensaio, mesmo um texto de reflexão, conta uma história” e “só há duas maneiras de organizar as matérias: ‘isto é como aquilo’ e ‘isto resultou daquilo’”. E assim se lançou para o percurso de escrita, que o transformou num dos principais escritores contemporâneos. Condição que utiliza para alertar os leitores, ou quem o escuta nas muitas intervenções públicas sobre o assunto, dos perigos inerentes a enfrentarmos subidas de 6ºC nas temperaturas médias dos nossos habitats no decurso deste século. Salvo se uma revolução contra o capitalismo de mercado livre aconteça e evite o desastre ambiental, que já estamos a percecionar das mais diversas formas. Mas como consegui-lo se ele se mascara - graças à tecnologia digital, que o hiperacelera! - numa “lógica de consumo e de promoção, de monetarização e de eficiência em cada minuto que passamos acordados”?
Chegámos a uma fase antropocêntrica em que até soluções engendradas como alternativas para evitar o acréscimo de dióxido de carbono na atmosfera comportam consequências desastrosas para a diversidade da fauna terrestre, mormente a avícola, que é a mais apreciada pelo dedicado birdwatcher, que Franzen assume ser. De facto as torres eólicas, sobretudo as implantadas nas rotas de migração das aves, são responsáveis por um morticínio cujas vítimas são difíceis de contabilizar. Para ele este século está a revelar-se trágico para uma grande parte dos animais selvagens, dada a atual extinção em massa, a maior desde a época dos dinossauros.
O crescimento populacional, a desflorestação e a agricultura intensiva, o esgotamento dos pesqueiros e dos aquíferos, a poluição causada pelos pesticidas e pelos plásticos ou o alastramento de espécies invasoras de ilhas, até então a elas incólumes, estão a dar substância a essa triste conclusão. Daí que proponha como única forma de evitar o contínuo empobrecimento da diversidade do mundo animal e vegetal “uma perspetiva da natureza como uma soma de habitats concretos ameaçados em vez de uma coisa abstrata que está a morrer”.

sábado, novembro 16, 2019

Diário de Leitura: O obstinado sentido de responsabilidade


No seu mais recente livro - «O Universo num grão de areia» - Mia Couto conta uma saborosa estória, que serve de exemplo para o que significa um inabalável sentido de responsabilidade.
Segundo ele o governo moçambicano decidiu tomar uma medida de grande interesse para o futuro do país, tão só consolidou a independência: enviou técnicos para diversas regiões da bacia do Zambeze para anotarem detalhadamente os caudais do rio nuns formulários elaborados para o efeito. Acontece que rebentou a guerra civil e o esforço foi esquecido por prioridades mais urgentes.
Anos depois  - em 1992 - as condições políticas fizeram ressurgir essa necessidade que, naturalmente, tinha de ser retomada a partir do zero. No entanto, numa dessas estações hidrométricas, os que para ela foram enviados tiveram a surpresa de encontrar o antecessor a ocupar uma casa cujas paredes estavam todas preenchidas com números registados a carvão. Estupefactos, concluíram que o colega não só prosseguira o trabalho ao longo desse longo hiato como, à falta de formulários, acabara por transformar a velha cabana num rigoroso registo dos seus dados.
Ler Mia Couto é sempre um prazer, mesmo quando se trata - como neste caso! - de uma recolha de textos publicados aqui ou acolá, ou redigidos para serem oralizados em discursos de circunstância e em conferências sobre os mais variados pretextos.
Um deles, datado de março deste ano, quando regressou à cidade natal, a Beira, depois da devastação nela causada por temível furacão, conclui que “em criança não nos despedimos dos lugares, pensamos que voltamos sempre. Acreditamos que nunca é a última vez.” Mas aquela ocasião dava-lhe o travo amargo do definitivo adeus.
Outros versam o medo, que ele reconhece ter sido um dos seus primeiros mestres, aquele que mais o fez desaprender. Um medo fabricado por quem tem medo que o medo acabe. Porque, antes de se fabricarem armas, criam-se fantasmas, que venham a justificar o seu uso. Daí surgirem muros em diversas latitudes. Sobre eles fica uma sábia conclusão: “É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha.” mas “a Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores”.
Lidas ainda só tenho umas dezenas de páginas, mas quantas luzes elas comportam...

Cirros, cúmulos e nimbos: Efeitos calvinistas


Andavam ainda os portugueses a mando dos Filipes, quando rebentou a bolha das tulipas em Amesterdão. Estava-se no ano de 1637 e ocorreu aquela que ficou conhecida como a primeira crise numa bolsa financeira. Logo para a estreia verificou-se a tendência para os incautos acreditarem piamente que uma bola, atirada ao ar, continuará sempre a subir, sem voltar a cair para lhes dar cabo das cabeças. A bola era, e continua ainda hoje a ser, o preço das ações, que entusiasma multidões, quando as convencem de ser fácil a riqueza no investimento em ações e só compreendendo o logro em que caem ao verem-se de bolsos subitamente esvaziados.

Não deixa, porém, de ser curiosa a razão porque os holandeses do século XVII fizeram das tulipas o cerne dessas cotações quotidianamente variáveis. Calvinistas por natureza, a fé inibia-os de ostentarem a fortuna. As belas flores constituíam oportuna exceção porque, detendo-as, não estariam a incorrer no pecado, antes se convenciam comprometidos na glorificação das obras do seu Senhor. Daí que, ainda hoje, sejam os holandeses os europeus, que maior afã dedicam aos seus jardins.
A capacidade de se crer na mais estapafúrdia das conclusões também se verificou com outro holandês - Vincent Van Gogh - cuja pistola foi leiloada por 162 mil euros e é hoje peça fundamental nas exposições itinerantes sobre a sua vida e obra. E, no entanto, publicita-se ter sido encontrada num campo em Auvers-sur-Oise, perto do sítio onde o pintor terá querido pôr fim aos seus dias, correspondendo o calibre à bala com que ele se terá atingido.
As dúvidas em torno desse suicídio nunca mais se elucidaram até havendo teses quanto a ter-se tratado de um homicídio sem que os perpetradores se vissem responsabilizados. Mas a mistificação em torno da biografia de Vincent não se fica por aí, porque as referências ao dinheiro em quase todas as cartas para o irmão Théo não resultariam da sua falta - a mesada por ele propiciada era bastante considerável para a época -, mas pelo mesmo ideário calvinista, que exige a devida retribuição para o produto do seu trabalho. Daí que ele não vivesse na indigência, mesmo que de tal hábito se vestisse, mas do inconformismo por não ter notícia da venda das centenas de obras produzidas nesses seus últimos dez anos de vida...