sábado, novembro 16, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «A Grande Esperança» de John Ford (1939)


O grande realizador soviético Sergei Eisenstein apontava «A Grande Esperança» como o filme norte-americano que gostaria de ter realizado. E, no entanto, fora a contragosto que John Ford aceitara de Darryl Zanuck a tarefa de traduzir em cinema o argumento criado por Lamar Trotti.

Nessa mesma altura estava bem mais interessado na concretização dos dois westerns, também estreados nesse ano - «Ouvem-se Tambores ao Longe» e «Cavalgada Heroica». Mas sabe-se bem quão difícil era contrariar a vontade  dos tycoons de Hollywood, sobretudo desse Zanuck, de cujo alfobre pareciam suceder-se êxitos sucessivos. Sobretudo nesse ano de início da Segunda Guerra Mundial, porventura aquele em que o cinema norte-americano produziu maior número de títulos memoráveis, tornando particularmente difícil a tarefa aos sócios da Academia, quando tiveram de escolher os nomeados, e depois os galardoados com os Óscares.

Ganhou «E Tudo o Vento Levou» mas quem se escandalizaria se os prémios tivessem ido para «O Feiticeiro de Oz», «Ninotchka», «Peço a Palavra»,  «Adeus Mr. Chips», «Gunga Din», «Engano Nupcial», «Vitória Negra», «O Monte dos Ventos Uivantes» ou «Isabel de Inglaterra»?

Não fora, porém, só Ford a colocar entraves ao projeto de Zanuck: o próprio Henry Fonda quis dele escusar-se, porque não se via a representar o papel de quem sempre considerara uma espécie de deus. Como poderia vestir a pele de quem impusera a ideia de um governo do povo, pelo povo e para o povo e ia ao encontro das suas próprias convicções democráticas? Mas, por essa altura, já Ford estava convencido a concretizá-lo e disparatou com o ator - então a rodar com ele um dos referidos westerns desse ano - dizendo-lhe que o filme seria afinal sobre o modesto advogado de uma pequena cidade, que ainda não alcançara a condição mítica depois conquistada quando acedera à Casa Branca.

Fonda sair-se-ia tão bem do compromisso que até Steven Spielberg dar a Daniel Day Lewis a responsabilidade de personificar o idolatrado presidente, sempre o imagináramos tal qual Ford o representara. Porque na forma intimista como revela um personagem antes dele vir a engrandecer-se há uma consistência, que se dissocia de qualquer estereotipo.

Não sei se a divisão do filme em três partes resultou do argumento de Trotti ou de como Ford o adaptou, mas elas são equivalentes em duração e estruturadas de forma a culminarem em momentos muito fortes. 

Na primeira parte temos um jovem lojista de New Salem a interessar-se por uns velhos livros de advocacia, aceites como moeda de troca a uma família carecida de provisões para prosseguir o rumo a Oeste. Ciente de se tratar de algo, que poderá mudar-lhe a vida e oferecer à namorada, Anne Rutledge, um futuro a dois mais aliciante, empenha-se no estudo, mesmo quando ela lhe morre, jurando-lhe seguir a carreira das leis junto à campa onde ela jaz. E esse é o clímax deste primeiro terço do filme, que ainda explicita o seu carácter rustico e algo dado a comportamentos com o seu quê de trapaceiro, sobretudo, quando já o encontramos em Springfield, onde montou o seu escritório de advogado.

Na segunda parte assistimos ao desfile e às diversões da comemoração do Dia da Independência, culminando no crime supostamente perpetrado por um dos irmãos Clay, quando um brigão se metera com a sua esposa. A tensão cresce quando a populaça, incitada pelo amigo da vítima, os quer linchar e Abe se intromete com um discurso vibrante em defesa do direito de qualquer cidadão ter direito a um julgamento justo e imparcial. Teremos, então, uma derivação para o policial, quando ele se põe em campo para descobrir o que, efetivamente, se passara, e construir, a partir daí, a estratégia de defesa capaz de inocentar os dois réus.

A terceira parte é maioritariamente passada no tribunal com a acusação a pretender que a mãe dos acusados afirme qual deles terá matado Skrub White, de forma a livrar pelo menos um dos filhos. Mas Abe consegue enlear o verdadeiro assassino em tal novelo, que ele denuncia-se em plena sessão.  Como se compreenderá, se na primeira parte o momento mais intenso ocorrera quase ao princípio, e na segundo a meio, nesta terceira parte ela coincide com a parte final, quando tudo já parecia perdido para os dois inocentes.

Como epílogo temos Lincoln a subir uma colina numa metáfora ao que se seguirá com a ascensão à presidência. Mas, em vez dos campos encimados por nuvens propícias aos sonhos, são os carregados nimbos, que lhe acompanham a dificultosa caminhada. Referência incontornável à Guerra de Secessão, que ele iria enfrentar.

Perante o nazismo em plena afirmação expansionista na Europa, Ford dá substância a uma mensagem inequívoca sobre a Liberdade e a Democracia. Entende-se assim  o elogio feito por Eisenstein quanto à importância deste filme porque, mais do que uma honesta biografia, ele transmite uma poderosa defesa dos valores que o fascismo tentava espezinhar. Ainda antes de se alistar na luta ativa, que o levaria à criação de imprescindíveis filmes de propaganda nos anos seguintes, Ford já aqui anunciava com orgulho qual a trincheira que iria integrar.

quarta-feira, novembro 13, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Genghis Khan» de Lou Salvador (1950)


Depois de já ter havido anteontem a oportunidade de ver o filme, repete-se amanhã, dia 14, pelas 15h30 a exibição de «Genghis Khan», um dos filmes integrados no ciclo atualmente a decorrer na Cinemateca a pretexto do centenário do Cinema Filipino.
Nos anos 40 e 50 essa filmografia produzia melodramas em série para corresponder ao gosto do público por histórias sentimentais, que requeressem o uso intensivo do lenço de enxugar lágrimas. Mas também havia entusiasmo com filmes de capa e espada como foi este o caso.
Apesar de assinado pelo ator principal, «Genghis Khan» terá tido Lou Salvador como realizador. Mas Manuel Conde tinha tanto sucesso, que os produtores apostaram na ilusão dele interpretar não só o príncipe mongol, mas também ser dado como o responsável criativo do filme.
Quando foi apresentado no festival de Veneza de 1952, a crítica entusiasmou-se com o que viria a ser o mais saliente aspeto dos filmes de artes marciais das décadas seguintes: a encenação das batalhas como se de bailados se tratassem.
A intriga é básica: participando com outros líderes tribais num conjunto de provas destinadas a definir direitos a alguns territórios, o príncipe Temujin não compreende tratar-se de uma cilada em que o anfitrião - o sinistro Burchou (interpretado por Salvador) - planeia assassinar todos os rivais durante o subsequente banquete.
A sorte ajuda o jovem a escapar com vida, mas vai encontrar a sua aldeia destruída e a mãe moribunda.
Decidido a vingar-se, Temujin cria as convenientes alianças para, no momento propício, ascender à condição de Grande Conquistador, derrubando o inimigo e ganhando como prémio suplementar a sua filha, a bela Lei Hai.

terça-feira, novembro 12, 2019

Nimbos: As homenagens não são todas iguais


Quase sessenta mil são os nomes dos mortos no Vietname inscritos no memorial mandado construir para os celebrar. No último dos nove episódios que Ken Burns realizou para documentar os trinta anos de intervencionismo norte-americano na Indochina diversos entrevistados confessam a comoção sentida, quando ali se dirigiram. Num país de excessos, os seus habitantes também nas emoções revelam-se desmedidos. Mas poucos contestam o trágico desperdício de jovens vidas destruídas numa guerra, que os cinco presidentes nela envolvidos sabiam antecipadamente perdida. E, no entanto, mentiram despudoradamente nos discursos em que justificaram o envio de novas vagas de recrutas para morrerem sem proveito nem glória. Com o requinte final de abandonarem à triste sorte os aliados sul-vietnamitas a exemplo do que repetiriam recentemente com os curdos na Síria.  Não foi preciso  esperar pela chegada de Trump à Casa Branca para que os iludidos cúmplices dos EUA soubessem na pele o que é sentirem-se com as costas quentes num dia e logo solitariamente abandonados no meio das ruínas deixadas pelos seus aviões bombardeiros.
A homenagem aos mortos nem sempre se revela vã como no caso desse muro edificado em Washington em 1982. Mesmo que o veterano John Musgrave o julgue capaz de ter impedido uns quantos suicídios.
Menos emotivas, mas bastante mais justificadas foram as evocações a Jorge de Sena e Sophia agora culminadas com cerimónias  e eventos organizados para os rememorar. Além deles vieram-nos hoje outras memórias referentes a quem desapareceu do mundo dos vivos há cerca de dez anos: Bartolomeu Cid Santos e João Bénard da Costa. Um e outro também merecedores de duradoura recordação.
Foi através de um documentário de Jorge Silva Melo - excelentes todos quantos assinou até agora sobre diversos artistas plásticos! - que pudemos regressar à vasta obra de gravura, quase toda criada em Londres, onde, durante décadas, Bartolomeu Cid Santos formou gerações sucessivas de artistas na Slade  School of Fine Art. Quem teve o privilégio de com ele privar lembra-lhe a alegria e a generosidade com que fazia de cada encontro uma festa. Tomando como referências preferenciais Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges e Tarkovski, tomou por temas os bispos, as sereias sorridentes, os labirintos e as paisagens melancólicas da Viagem no Inverno compostas em lieds por Schubert.
Quanto ao antigo diretor da Cinemateca houve quem lembrasse as tardes de quarta-feira no Liceu Pedro Nunes, onde era professor, onde conseguia prender a atenção dos miúdos (entre os quais o citado Jorge Silva Melo) ao falar.lhes de filmes, que eles nunca tinham visto. Já então estava em causa a preocupação com o ensino da forma de olhar imagens que, longe de constituírem um divertimento, deveriam servir para fazer pensar. Por exemplo as que viriam a ser muitos anos depois criadas pelo realizador Gabriel Axel a partir do romance da sua compatriota Karen Blixen. «A Festa de Babette», memorável filme, trazido à colação num oportuno zapping, demonstrava como o cinema pode - e deve! - realçar certas realidades cristalizadas, potencialmente abanáveis por quem as sujeite a inteligentes modelos de contestação. Na novela, e no filme correspondente, uma austera comunidade protestante confrontava-se com a tentação do pecado através da lauta refeição confecionada em sua intenção pela estrangeira, que com eles viera viver durante uma temporada. Um bom exemplo de como as certezas enquistadas de uns quantos podem ser desafiadas por quem ouse questioná-las...
12/11/2019

Diário de Leituras: Um livro sobre o fracasso e a saudade


«Tous les hommes n’habitent pas le monde de la même façon» valeu a Jean-Paul Dubois o Prémio Goncourt deste ano, cujo merecimento defendi num texto aqui postado alguns dias atrás.

O protagonista é Paul Hansen, nascido em Toulouse e emigrado no Canadá onde assegurou, anos a fio, a manutenção de um grande edifício até se ver condenado a dois anos de prisão por agredir quem viera perturbar-lhe a tranquila existência, vivenciada com a mulher e a sua cadela.
Numa entrevista à «Diacritik», Dubois apresenta-o, bem como ao desafio que o levara ao espaço concentracionário donde faz o balanço de tudo quanto fizera até então : “é um homem bom que vai ser confrontado a um administrador extremamente cínico, capaz de lhe tornar a vida insuportável. É um administrador do mundo moderno que racionaliza e se marimba para a história, desprezando os sentimentos existentes no interior do edifício, os elos humanos tecidos durante anos. É um «cost killer», uma espécie que emerge de uma cultura capitalista, apostada em cortar nos custos. Está-lhe na essência, na natureza. Há, pois, um crápula disposto a cortar cabeças, hábitos e relações humanas, que para nada servem e custam caro, até por serem desnecessárias num edifício. E tudo vai abanar: é o fim de um mundo e o nascimento de outro, que desregula todas as ligações sociais no interior de um espaço com sessenta e oito apartamentos.”
Ao descobrirmos a vida de Paul Hansen concluímos que ela decorreu maioritariamente entre dois espaços fechados - o da prisão e o do edifício. Se conhecera e casara com Winona, fora através da prestação de um serviço a um dos moradores do condomínio. Mas as fragmentadas memórias coincidem com o contexto histórico em que se situam: o pós-guerra, as revoluções de 1968, a crise dos subprimes, o escândalo do amianto. Eventos que constituíram momentos de charneira para o mundo ocidental. Mas vêm à colação as características dos precedentes romances de Dubois: o questionamento das opções estratégicas da América do Norte, o peso do passado e a forma como vamo-nos fazendo acompanhar pelos nossos mortos...

Auditórios: Recordar Alexander Borodin no dia do seu aniversário.

Diário das Imagens em Movimento: «Made in Italy» de Luciano Ligabue (2018)


À exceção do que Nani Moretti vai realizando - convenhamos que cada vez mais esporadicamente! - o cinema italiano não tem produzido obras de particular interesse nos últimos anos. A geração de grandes realizadores que nos davam a ver filmes memoráveis parece ter-se extinguido com Ettore Scola. O que, no fundo, se interrelaciona com a evolução política de um país em que, primeiro com Berlusconi, e mais recentemente com Salvini, se fizeram emergir o que de pior andava recalcado no âmago dos seus habitantes. Se nos anos 60 Dino Risi mostrou esses «Monstros» de forma a que servissem de argumentos para as suas comédias  - a eles voltando no final dos anos 70 com Scola e Monicelli nos «Novos Monstros»! - eles saltaram dos filmes bem humorados para surgirem como personagens assustadoras.
Luciano Ligabue, que assina a realização deste «Made in Italy», é um cantor de sucesso no seu país. Segundo os jornais não é fácil vê-lo em concertos, porque esgotam com inusitada rapidez. Mas se me escuso a comentar-lheos dotes canoros, não me senti nada impressionado pelos investidos na concretização deste projeto. Porque, tomando por protagonista, um desnorteado membro da classe operária, esta surge completamente incapaz de ir além do alinhamento dos sintomas, que a deixam insatisfeita, sem agir consequentemente para lhes dar expedita solução. Pelo contrário Ligabue deixa uma mensagem específica aos revoltados operários do seu país: se estão assim tão insatisfeitos tratem de emigrar, porque poderão ganhar bom dinheiro como empregados de mesa em restaurantes italianos numa qualquer cidade alemã.
Stefano Accorsi, a quem Maria de Medeiros deu o papel de Salgueiro Maia no filme sobre a Revolução de Abril, é esse operário de uma fábrica de salame que, ao fim de trinta anos de trabalho, vive miseravelmente com os 1200 euros de ordenado. Ao melhor amigo confessa o medo de, depois do avô ter construído a casa onde mora e o pai a ter ampliado, caber-lhe a triste missão de a vender por já não ter a capacidade de a manter. Estamos perante uma óbvia metáfora da própria Itália, também ela em progressiva degradação política, económica e social.
Os amigos servem-lhe de paliativo para lhe sossegarem as frustrações, assim como a amante, que acaba por repudiar. Mas ele, que nunca se privara de saltar a cerca, fica possesso quando se sabe traído por Sara a quem já mal dirigia a palavra. A revolta dá-lhe alento para ir a Roma, integrar-se numa manifestação e ver-se brutalmente agredido por um polícia de choque.
Herói nacional por umas horas já que as imagens desse momento tornam-se virais, Riccardo dececiona o jornalista, que o entrevista à saída do hospital, não lhe dando as respostas expectáveis em quem suposera agir contra quem o explorava e lhe cerceava os direitos fundamentais. A entrevista para a televisão é um momento confrangedor, porque ele escusa-se a entender quanto a aposta nas cumplicidades coletivas dos seus parceiros de infortúnio poderia contrariar a impotente manifestação do seu espúrio individualismo. Mas reflete, afinal, esta época em que os explorados viraram costas aos sindicatos e aos partidos mais à esquerda para, fazendo gala da sua condição apolítica, transformarem em atos de vandalismo a insatisfação dos seus sonhos nenhuns.
«Made in Italy» acaba por ser daquelas propostas cinematográficas, que poderiam ter escolhido trilhos diferentes e com outra consistência em vez da embrulhada narrativa, que alterna entre o confuso e o incoerente...

domingo, novembro 10, 2019

Diário das Imagens em Movimento: «Um Dia Inesquecível» de Ettore Scola (1977)

Um Dia Inesquecível é um exemplo antológico do que significa o termo drama de câmara, que coincide com o teatro clássico no facto de nele se verificar a unidade do tempo (um dia), um espaço (um prédio ) e um ação (a relação amorosa entre dois seres que nada tenderia a aproximar).

Logo de início ficamos a saber que Hitler está de visita a Mussolini - estamos em 6 de maio de 1938, quando a Segunda Guerra Mundial já se perfila no horizonte - e grandiosas cerimónias são organizadas para receber com pompa quem pode dar o aval às pretensões do anfitrião na África Oriental. Entre os balillas, que então desfilaram estava o jovem Ettore, então com oito anos de idade. Salazar reproduziria essa ferramenta de propaganda na odiosa Mocidade Portuguesa.

Sophia Loren, maquilhada para dela apagar tudo quanto pudesse lembrar a sua imagem de sex symbol, é Antonietta Taberi, uma dona-de-casa impedida de acompanhar a família ao evento por ter demasiado que fazer na casa que partilha com o marido e a numerosa prole. Mas é uma assumida defensora do regime sobre o qual organiza um álbum de imagens, carinhosamente guardado junto com o retrato de Mussolini, que criara com botões, e com a inebriante recordação de ter descoberto a primeira gravidez, quando desmaiara ao ver o ditador passar perto de si montado a cavalo.

Há, porém, um inesperado incidente, de enorme significado simbólico e com consequências avassaladoras para as horas, que se seguirão: o pássaro foge-lhe da gaiola e vai parar à janela do vizinho, Gabriele, que estava decidido a suicidar-se nesse momento.

A conversa entre ambos vai ter um efeito mutuamente redentor: ela descobre um homem sensível, antítese do marido. Ao oferecer-lhe «Os Três Mosqueteiros», para que usufrua na leitura outras realidades, Gabriele insinua-lhe a possibilidade de encontrar satisfação noutras realidades, que não as comezinhas do dia-a-dia. E ao constatar como se revela tão fácil a transformação de um ser numa sua possibilidade melhorada, ele recupera gosto pela vida, mesmo que o espere a deportação para o cu de judas por não se lhe tolerar a homossexualidade.

A exemplo de Loren, Mastroianni desempenha um papel em total dissonância com o de macho latino, que se lhe colara até então (embora  O Belo António de Mauro Bolognini já constituíra, em 1960, a negação de tal estereotipo).

Bem tenta a porteira alertá-la para os perigos de se dar com o vizinho, que Antonietta vira costas à coscuvilheira e convida-o para com ela compartilhar um café. E se, a princípio, o confessado pendor sexual dele a incomoda, depressa supera o preconceito ao sentir-se valorizada, como nunca sentira até aí. Talvez pela primeira vez há quem a veja como sendo mais do que uma mera escrava do lar. Ambos vão partilhar as respetivas solidões, consumada na dinâmica da surpreendente intimidade. E, se no final, Gabriele é levado pela polícia, adivinha-se que, por trás da fachada de mãe de família, Antonietta vê brotar em si um novo despertar para a realidade à sua volta. O que fará desse dia, um marco inesquecível.

O filme inicia-se com um plano-sequência em que vemos Antonietta a passar por diversas divisões da casa, acordando a família cuja caracterização vai sendo definida como pertencente a um estrato social médio-baixo. Os temas começam a esboçar-se, desde logo com a demonstrada submissão da esposa ao marido e a rendição à lavagem cerebral imposta pelo fascismo. Mas, mais a diante, encontraremos o da rejeição do outro por ser diferente e a reaferição dos valores, que abre espaço à subversiva extraconjugalidade.

Os movimentos dos atores face à câmara, ou desta a rodeá-los, constituem uma espécie de dança, que antecipa a expressão da mútua sensualização. Mas as deambulações da câmara assumem outros sentidos: o de explicitar o objetivo da arquitetura fascista, que possibilitava a colocação de cada indivíduo sob o constante olhar dos vizinhos, dando substância à intenção programada de todos sentirem-se vigiados e potencialmente denunciados se adotassem comportamentos tidos como subversivos. Não deixa de ser irónico, que a filha de Antonietta seja interpretada por Alessandra Mussolini, sobrinha de Sophia Loren e neta do ditador, cujas ideias viria a recuperar na posterior adesão a um dos principais partidos italianos de extrema-direita.

Convirá, igualmente, olhar no tom intencionalmente esmaecido da fotografia, para retirar cor ao ambiente em que vivem os personagens e aproximá-los visualmente da cinzentude desse tempo moribundo.

Justificando a razão de ser do filme Ettore Scola diria que, através do fascismo histórico, pretendera denunciar o que ele legara duradouramente nas mentalidades ao impor normas rígidas do entendido como bom, diabolizando, e visando eliminar tudo quanto pudesse desviar-se desse cânone. Nesse sentido o filme continua muito atual como se conclui da realidade hoje vivida em diversificadas geografias.

Um comentário final para a sonoplastia:  durante todo o filme ouvimos a transmissão radiofónica da cerimónia fascista com ribombante música guerreira, as ovações da multidão, o discurso de Hitler e os entusiasmados comentários do locutor. E é essa permanente existência como pano de fundo, que contextualiza a estória e lhe acrescenta o sentido dramático de uma ameaça sempre latente.

Diário das Imagens em Movimento: O Plano-sequência


A Arca Russa constituiu uma demonstração explícita do plano-sequência com a ininterrupta continuidade da mesma cena ao longo dos vários espaços, que integram o Hermitage. Durante oitenta minutos, guiados pelo narrador-realizador em voz off e pelo aristocrata francês do século XVIII, pudemos ver Alexander Sokurov concretizar aquilo que Alfred Hitchcock idealizara para A Corda, mas ainda não tinha meios técnicos que lho permitissem.

Ao longo da História do Cinema assistimos a planos-sequência antológicos. Lembremos, por exemplo, Matou (1930) de Fritz Lang em duas cenas, uma com um minuto e quarenta e a outra com quarenta segundos, em que a turba de malfeitores dirige-se à sua sede com a câmara a movimentar-se surpreendentemente depressa para a época. Mas a este filme voltaremos numa sessão ulterior, dado tratar-se daqueles que constituíram um marco na Sétima Arte.
Até à implementação das câmaras digitais o limite técnico era imposto pela maior das bobinas utilizadas (a de 300 metros no formato de 35mm), que possibilitava um máximo de 12 minutos. E a steadycam, surgida nos anos 70, também facilitou a tarefa aos cineastas apostados em explorarem o impacto semiológico do plano-sequência.
Em 1948, Alfred Hitchcock teve de arranjar uma engenhosa solução para fazer com que o seu filme parecesse rodado num único plano-sequência. Começa numa cena exterior em que se constata ser dia e tudo se passará no mesmo espaço interior onde a câmara nos leva até concluir-se com a noite caída sobre a cidade. No entretanto os personagens deambulam pelas diversas salas do apartamento em onze cenas com dez minutos de duração de forma a que, quando uma bobina acaba, a rodagem seguinte inicia no mesmo objeto em que ali se focalizara por breve instante ou num plano das costas de um dos personagens. A exemplo dos demais filmes do realizador em que sempre constitui um desafio descobrir onde está o seu cameo (e neste ele é particularmente difícil de encontrar!), A Corda pode ser apreciada não só pela estória em si, mas também pela deteção desses momentos de corte em que houve a necessidade de mudar a bobina.
Já estamos em condições de compreender quão diferente é um plano-sequência do longo plano tão comum no cinema de Manoel de Oliveira, porque pressupõe um movimento, normalmente de um personagem, através de um cenário ou de vários cenários. Ou do travelling, que corresponde a uma sucessão de movimentos quase sempre de transição entre duas cenas, embora no caso da abertura de O Ano Passado em Marienbad (1961) de Alain Resnais sirva para caracterizar o espaço onde o drama sentimental ocorrerá.
A concluir evoque-se ainda um conhecido plano-sequência falso em Olhos de Cobra (1998) de Brian de Palma em que os doze minutos iniciais resultaram de sete ou oito segmentos, interligados tão perfeitamente, e de acordo com a metodologia seguida no tal filme de Hitchcock, que só apreciando-os fotograma a fotograma se conseguem detetar os cortes.
(texto elaborado como material de apoio para a sessão de amanhã, dia 11, de «Histórias do Cinema» na Usalma às 14h30)