domingo, janeiro 27, 2019

(DL) Pode-se adivinhar a morte a prazo da Literatura?


Muito interessante, como quase sempre sucede, a crónica de António Guerreiro na edição do «Ípsilon» desta semana por  considerar chegada a hora do que Goethe designou por «Literatura Mundial», ou seja, uma escrita criativa já não subordinada às idiossincrasias identitárias de cada cultura, mas a uma espécie de cânone global, quer na língua (até ver o inglês), quer nos conteúdos. Nesse sentido o mais recente romance de Michel Houellebecq  - «Serotonine» - corresponderia a essa realidade, porque, tão-só lançado, logo se viu objeto de sinopses e de análises por prestigiadas publicações dos vários continentes. E, no entanto, nenhuma delas a afiançar que se pudesse tratar de um romance com mérito.

De entre as questões, que Guerreiro lança, há a das traduções, que me parece particularmente sugestiva, porque a lógica do «traduttore, traditore» faz todo o sentido. Nunca tentei ler uma das traduções de Saramago em inglês ou francês, mas acredito que muito dificilmente nelas encontraria o que me seduz  no estilo do autor: uma construção das frases com inserção de juízos ou questões filosóficas de permeio, uma certa musicalidade do texto quando lido oralmente, uma diluição pragmática entre diálogos e narração com recurso a uma pontuação reduzida ao mínimo. Quem poderá dizer que um romance numa língua se mantém fiel a si mesmo, quando vertido para outra completamente diferente?
O risco que a afirmação dessa tal Literatura Mundial comporta é o da sua extinção a prazo. Porque essa globalização linguística e dos temas abordados tenderá a reduzir os romances não integráveis nesse novo cânone como aberrações ostracizadas pelo mercado de comercialização do livro e pelo gosto dos seus leitores. Numa réplica do que são os movimentos sociais, as minorias enfraquecidas não conseguem evitar o seu inevitável esmagamento. Mas, paradoxalmente, Guerreiro, prevê que o sucesso dessa tal Literatura Mundial alberga em si o estigma da sua própria extinção porque o que se enquadra na criatividade artística sempre carecerá de novidade, de rutura com o que antes existia, razão porque o vitorioso padrão  logo se verá por sua vez derrubado. Para fazer sobressair o quê? Guerreiro não o prevê, mas até pode nem ter nada a ver com a Literatura, então definitivamente declarada como coisa morta num tipo de sociedade, que lhe deixará de sentir a falta.

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