sexta-feira, janeiro 18, 2019

(DL) O Romance Gráfico: 5ª parte - «Demasiado não chega» de Ulli Lust


No verão de 1984 duas adolescentes austríacas pegaram nos sacos-cama e nalgumas roupas e partiram a pé para Itália para aí passarem dois meses, viajando por Verona, Roma, Nápoles desembocando na Sicília. Vinte cinco anos depois recorda as vicissitudes dessa experiência partilhada, quer resgatando da memória quem conheceu, quer as dificuldades ultrapassadas, sobretudo as situações de violência sexual, quer por proxenetas, quer por mafiosos.
Clémenceau dizia que todo o jovem que não fosse anarquista aos vinte anos era um imbecil, mas também o seria aos quarenta anos se continuasse eivado dessa utopia juvenil.  À luz dessa citação, Ullia Lust, a autora de «Trop n’est pas assez» , nem terá acolhido esse insulto aos dezassete anos, quando partiu com uma amiga para o outro lado da fronteira alpina - sem papéis numa altura em que Schengen era uma miragem! - nem um quarto de século depois, quando abordou autobiograficamente tal passado com a distância de quem, da vida, já colhera proveitosas lições.
A viagem iniciática dera-lhe a conhecer algumas que nunca mais esqueceria: o sentido da verdadeira amizade, o confronto com a agressividade de ambientes desconhecidos, a ingenuidade de se crer mais forte do que julgava, o quotidiano dos que não têm abrigo ou a vulnerabilidade feminina, quando se vê só.
Não tornando cor-de-rosa nem pintando de negro as sucessivas vicissitudes, Ulli Lust coloca-se numa narração neutra assente, sobretudo, no encadeamento dos factos ocorridos, permitindo ao leitor retirar conclusões ou colocar questões sem resposta sobre o que vai descobrindo ao longo das 450 pranchas.
A jovem Ulli depressa compreenderá que a resiliência depende de enfrentar cada dia como se fosse o último. O que a leva a assimilar muito rapidamente tudo quanto lhe acontece. Se tudo serve para aprender a arte de viver, os custos de tal formação acelerada não se revelam fáceis de suportar. O que a acaba por salvar é o que ela pretenderia deixar para trás: o passado, que lhe serve de boia de salvação. E tudo verter em forma de texto e de imagens só contribui para lhe consolidar a maturidade com que olha para esse pretérito vivenciar sem dele renegar o que quer que fosse.

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