quarta-feira, setembro 05, 2018

(DL) América, a terra madrasta


A primeira vez que tive a noção concreta de existir uma notória discrepância entre a América, Terra dos Sonhos, e a realidade, aconteceu-me em 1986, quando estive pela primeira vez nos Estados Unidos e contactei com a comunidade emigrante em Newark. Se a passagem, dias antes, por Nova Iorque demonstrara-me uma cidade ameaçadora no bairro italiano, obsessivamente sexualizada na rua 42 ou já muito marcada pelas drogas, que empestavam o piso inferior do ferry para Staten Island com um cheiro elucidativo, a prova dos nove quanto a ser sítio onde não gostaria de viver ocorreu quando, num restaurante de New Jersey, os nossos compatriotas contaram quanto pagavam pelo parto dos filhos e que horários cumpriam nos matadouros onde o ritmo de produção era suficiente para, ao fim de doze horas, dali saírem só com vontade de se irem estender na cama e acordarem à hora de voltarem a pegar ao serviço.
Essa memória veio-me à mente ao iniciar a leitura de «Terra Madrasta», o livro de Jonathan Raban dedicado às suas deambulações pelo Montana. Encontrando um cenário devastado de antigas mansões em ruínas, abandonadas por quem nelas julgara encontrar o paraíso e o vira infernizado pelo garrote dos bancos. A idealização de futuros aliciantes causara um dos maiores logros da História do Século XX: enganadas pela propaganda das companhias ferroviárias, que tinham colocado linhas de uma ponta a outra do território norte-americano, e ali criaram cidades carecidas de habitantes, vagas sucessivas de emigrantes partiram da Europa esperançados em serem donos de grandes extensões aráveis. Desconheciam, que os solos eram pobres e as chuvas raras.
Por cada uma ou outra história de sucesso, ocorreram milhentas concluídas em tragédias humanas sofridas em desesperados silêncios. Mas dado o sucesso da matriz individualista com que foi cunhada a nação do Tio Sam, sempre se depreciaram os derrotados por lhes faltarem méritos para vencerem as circunstâncias. Omite-se que a aventura americana equivalia a um jogo de poker com as cartas previamente marcadas por quantos se adivinhavam vencedores à partida.

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