sexta-feira, janeiro 22, 2016

DIÁRIO DE LEITURAS: «American Darling» de Russell Banks (2004)

Depois de «O Coração das Trevas», a África nunca deixou de ser o espelho aumentativo dos terrores e das crueldades do Ocidente. É certo que a Libéria de Russell Banks não coincide com o Congo de Joseph Conrad, mas a protagonista de «American Darling» descobrirá ali a mesma abominação.
O romance começa por ser uma confissão, a de Hannah Musgrave, então com 59 anos e a viver numa quinta dos Apalaches: antes de se dedicar às suas galinhas, teve outras vidas quando, filha única de um célebre pediatra, militara nos anos 60 pelos direitos cívicos dos Negros e contra a guerra do Vietname.
Herdeira rebelde da burguesia puritana e liberal da costa leste militara na organização radical Weather Underground até se ter de refugiar na Libéria para escapar à perseguição do FBI. Assim que viu-se casada com Woodrow Sundiata, ministro da Saúde do governo de William Tolbert, de quem teve três filhos.
 Durante alguns anos viverá em Monróvia a existência fútil da mulher de um dos principais ministros do regime. Mas, em 1980, Tolbert foi assassinado na sequência do golpe de estado do sargento Samuel Doe e Sundiata é pressionado para se separar da sua mulher branca. Ela regressa sozinha aos Estados Unidos.
Porém, seis meses depois é autorizada a voltar à Libéria, conseguindo do novo presidente a autorização para criar um santuário destinado a acolher os chimpanzés sobreviventes de experiências médicas em laboratórios americanos.
A oposição à ditadura de Doe é então conduzida por Charles Taylor e a família de Hannah encontrar-se-á no centro do furacão, que é a guerra civil: em 1990, na presença da mulher e dos filhos, Woodrow é executado à machadada pelos esbirros de Doe, ele próprio sujeito ao mesmo destino algumas semanas depois, quando se verifica a vitória dos rebeldes.
Com o marido morte e os filhos desaparecidos, Hannah regressa aos Estados Unidos.
Dez anos depois regressará pela última vez a Monróvia para compreender as razões da sua fuga dali. Sem encontrar os filhos, consegue saber que se terão, entretanto, convertido em temíveis carrascos.
Fica a questão: quem é afinal Hannah?
A exemplo de muitos outros romances norte-americanos, «American Darling» é uma variação do tema da reinvenção da sua própria identidade. O verdadeiro sonho americano passa por aí: voltar a partir do zero, mudar de aspeto, desaparecer e ressurgir mais tarde na pele de outrem.
Durante toda a sua vida, Hannah procura-se e foge, sempre estranha a si própria, partilhada entre as suas múltiplas identidades: Hannah Musgrave, Scout, Dawn Carrington, Mrs. Woodrow Sundiata.
Russell retrata-a como uma dessas temíveis idealistas capazes de matarem os pais em nome dos seus princípios. Ela ama a humanidade de uma forma fria e abstrata: na sua individualidade os homens são-lhe indiferentes.
Tal como, em jovem, abandonara os pais, também não sentiu escrúpulos em deixar para trás os amantes, os amigos, o marido e até os filhos, porque nunca cuidara de se ligar profundamente a ninguém. As capacidades de afeto só se restringiram aos seus adorados chimpanzés.
Através das vicissitudes por que Hannah passa, Banks denuncia os desvios de toda uma geração, que se julgava capaz de mudar o mundo, nem que para tal se visse obrigada a recorrer à violência.
Revisitando o seu próprio passado Banks leva a julgamento o radicalismo dos anos 60. Mas, a exemplo de Philip Roth em «Pastoral americana» exagera: tal qual se conta e descreve, Hannah torna-se tão monstruosa no seu narcisismo, que acaba por parecer pouco verosímil. Em nenhum momento, consegue emancipar-se do autor que, através dela, exorciza os seus próprios fantasmas, e a sua voz de narradora nunca consegue sentir-se como autónoma.
»American Darling» não se limita a ser uma ficção autobiográfica, assumindo-se, igualmente, como a narração de uma das mais atrozes guerras civis ocorridas na África do século XX. Mas a escolha da Libéria para cenário de uma parte significativa do romance não constitui um acaso: é que trata-se de uma invenção norte-americana, uma terra colonizada no século XIX por escravos alforriados nos Estados Unidos.
A história de Hannah denuncia a miséria crónica do povo liberiano, a corrupção descontrolada dos seus líderes sucessivos, etambém o elo perverso do país com os EUA, como se demonstra no papel decisivo sempre desempenhado pela Embaixada em Monrovia.
Russell Banks conhece muito bem a África, e aborda o imperialismo e o colonialismo sem concessões, mas «American Darling» não é o seu romance politicamente mais contundente. Pelo contrário, ele até permite constatar que Banks sente-se menos constrangido nas denúncias, quando toma por tema os desfavorecidos dentro dos próprios EUA.

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