domingo, janeiro 10, 2016

ARTES VISUAIS: Um quadro determinante de Kandinsky

No início do século XX a intelligentsia de S. Petersburgo sentia um enorme fascínio por tudo quanto provinha de França. A pintura russa procurava seguir o que, então, constituía moda nos salões parisienses ainda intimidados com as propostas impressionistas.
Datado de 1907, e sendo um dos quadros menos conhecidos da sua obra, «A Vida Misturada» de Kandinsky constitui uma rutura com essa predominância ocidental, ao aliar a modernidade ao tradicionalismo identitário russo.
Para Vassily Kandinsky tudo começara em 1889, quando ainda jovem estudante de Direito, foi estudar os tribunais rurais, que exerciam a justiça nas zonas mais recônditas do Império czarista. Apanhando o comboio até onde então se estendia, seguindo depois por barco e carruagem irá contrair o tifo numa pequena vila na confluência de dois rios.
Terá sido sob os efeitos da febre, que ele visionou pela primeira vez a transformação da realidade, feita de miséria dos camponeses, mas também das múltiplas cores do seu vestuário e dos ícones por eles tão respeitados, numa mescla traduzida neste seu quadro.
Nele podemos constatar o registo religioso na igreja e nos seus ícones. Distinguem-se dois irmãos no centro da tela, que imitam uma imagem muito reproduzida dos filhos do czar que fizera construir a primeira igreja católica em Kiev. Existe, igualmente, um S. Jorge em luta com um dragão, mito pagão transferido para a tradição cristã e igualmente muito abordada nos ícones por representar a metáfora da luta contra o mal e a ignorância.
Na base de uma colina deteta-se uma igreja ortogonal, que traduz a tradição arquitetónica local, bem como a cabana da feiticeira Baba Yaga, figura do folclore do leste europeu, tida como guardiã do reino dos Mortos e que domina a Noite e o Dia.
Todo o quadro reflete a influência das estampas, então muito populares, e sempre de cunho místico, baseadas na acumulação de múltiplos elementos.
Quando regressou da sua longa viagem de inspeção ao funcionamento das instituições judiciais no mundo rural, Kandinsky veio transformado: elaborou um relatório a defender o seu funcionamento por ser o que mais se ajustava ao “génio russo”, confrontando-se com a opinião das elites, mais dispostas a adotar os modelos ocidentais.
Kandinsky associa-se, assim, a Dostoievski nesse combate pelo primado dos usos e costumes russos, criticando a tentativa de os substituir por outros a eles estranhos.
Decide também abandonar os estudos de Direito e viajar por toda a Europa (Munique, Veneza, Dresden, Zurique e Berlim) com diversas passagens intercaladas por regressos a casa.
«A Vida Misturada» já reflete a influência do que viu nessas viagens sem deixar de traduzir na tela o universo musical russo.
Influenciado por um Tratado de Cores olha-as como ferramentas essenciais no sentido de criarem sensações, mais do que contribuírem para elucidar a razão das formas. Prepara-se para dar o salto para o abstracionismo em que as cores dispensariam as próprias formas.
Essa lógica revolucionária explica a sua adesão entusiasmada à vitória bolchevique, passando os quatro anos entre 1917 e 1921 a contribuir para a sua estimulante aventura artística. Mas, contraditório como sempre, optaria pelo exílio para participar noutra revolução artística não menos relevante: a da escola Bauhaus.


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