Começa-se sempre a ler uma obra de Mário de Carvalho com a curiosidade de descobrir em qual das distintas vertentes da sua criatividade ela se revelará.
Já o tivemos como narrador de contos mágicos em ambientes de exotismo oriental.
Rimos com gosto das vicissitudes bairristas de personagens urbanos empurrados para autênticos becos.
Comovemo-nos com personagens comuns sujeitos a situações trágicas, muitas delas passadas na Guerra Colonial.
Acompanhámos as ilusões de quem muito acreditou nas utopias revolucionárias e sofreu depois com as inevitáveis ressacas.
Embora revisitando muitas vezes as mesmas personagens ou os seus estereótipos, Mário de Carvalho consegue ser quase sempre imaginativo e dá bom trato à língua.
O seu livro mais recente, «O Homem do Turbante Verde», tem dez contos distribuídos por quatro partes distintas, todas elas prefaciadas por uma citação.
Na primeira temos a de um padre aventureiro quinhentista: por ventos e cansados areais. Consta de dois contos, o primeiro dos quais dá o título ao livro e é passado no Afeganistão com uma equipa de arqueólogos apostados na descoberta de inscrições rupestres milenares. O pior são os talibãs, que os raptam e ameaçam matar, valendo-lhes então a argúcia dos comandos militares da região. por precaução decididos a assegurarem-lhes a segurança através do rapto do filho do chefe inimigo, o tal homem do turbante verde. Que constituirá a imprescindível moeda de troca.
Conclui o coronel para o arqueólogo: O que lhe valeu é que os tipos daquele lado também têm amor aos miúdos.
«Na Terra dos Makalueles» é o segundo conto desta primeira parte do livro e mostra como uma frágil Dama é a mais esperta dos aventureiros, que se embrenham na África profunda para se apossarem de meia dúzia de estátuas iluminadas de uma tribo particularmente aguerrida.
Utilizando os seus encantos, ela vai conseguindo a eliminação dos seus companheiros de viagem até a acabar como dona exclusiva do tesouro roubado.
A segunda parte tem como inspiração a pergunta poética de José Gomes Ferreira: quem te pôs na orelha essas cerejas, pastor? E contém três contos, todos passados na época da ditadura fascista.
«Rua dos Remolares» faz-nos cruzar um jovem, quando decide desertar do Exército, não só por causa da Guerra Colonial, mas também pelo desagrado suscitado pelo novo capitão do quartel aonde faz a instrução.
Os seus modos prussianos de disciplina fazem-no decidir-se a dar o passo decisivo. E não é que afinal o seu contacto clandestino para dar o salto, acaba por ser esse mesmo capitão?
«A Secção de campo» mostra como um grupo de jovens cineclubistas quase são linchados na aldeia aonde propõem mostrar «Couraçado Potemkine» chegando assim à conclusão da enorme distância entre a realidade e a ideia utópica, que dela faziam.
Um pouco na mesma linha do conto anterior, aonde dois dos jovens viam a rapariga do grupo mostrar-se indiferente a eles optando pelo que os dirigiam, este conto mostra um estudante a militar numa célula clandestina não só pela luta em si, mas porque nela colabora a bela Marília, que um dia se exila para outro país e o deixa mergulhado numa sensação de vazio.
Para a terceira parte do livro, a citação inspiradora é de Eça de Queirós: O nosso mote, como a nossa vida, todo se encerrava naqueles dois belos versos: A galope, a galope, oh fantasia,/ plantemos uma tenda em cada estrela.
E fantasia é o que não falta ao conto «O Celacanto», em que o narrador ajuda a amiga Jacinta na sua instalação numa das galerias da Rua da Escola Politécnica. Figura maior dessa exposição é um desses peixes pré-históricos ainda existentes no mar de Moçambique e que ganha em Lisboa uma característica insuspeitada: voa pelos ares e escapule-se da galeria para encontrar abrigo numa casa pobre para a qual a tal amiga convoca a polícia.
Caberá ao narrador arranjar arrevesada explicação para que os atordoados polícias saiam dali sem mais delongas, enquanto o peixe, após essa aventura, regressa prudentemente para a exposição.
Em «A Contaminação», o narrador acaba a perguntar-se se estará possuído da mesma maldição, que acabara de conhecer num episódico interlocutor conhecido no cais da estação de Campanhã aonde se preparava para apanhar o comboio de saída do Porto. É que, poucos metros terão decorrido desde a partida e um desmoronamento obrigara a composição a travar a fundo, obrigando os passageiros a regressar a pé ao cais.
O lisboeta maltrapilho, que conhecera, dera-lhe uma noção do que era a armadilha terrível em que ficara enleado: um ano atrás fora incumbido de ali ir assinar uns papéis e regressar rapidamente a Lisboa. Desde então, nem de comboio, de avião, de carro ou a pé, conseguira sair da invisível fronteira em que estava aprisionado. E, no entanto, tudo começara na aparentemente inofensiva tertúlia literária de uma tal marquesa de Valdonor, aonde bebera um licor que o deixara inconsciente. Desde então perdera emprego e casamento, chegando a um estado de conformada aceitação da sua sina…
«O Chochman» é o antepenúltimo conto do livro de Mário de Carvalho e o primeiro subordinado à influência de Kafka.
Mergulhamos, pois, numa ambiência absurda em que o indivíduo passa a ser um peão desprotegido no meio de uma engrenagem contra a qual nada pode.
O narrador consegue entrar no edifício onde trabalha, mas logo a ex-namorada Marcela ou o colega Antero notam o facto de ele não trazer consigo esse tal «chochman», que nunca chegaremos a saber o que é.
Numa primeira fase escondem-no e alimentam-no clandestinamente na cave. Mas, depois, são eles a denunciá-lo e a condená-lo…
Penúltimo conto da vertente kafkiana do autor, «A Longa Marcha» tem por protagonista um delinquente envolvido numa quadrilha dedicada ao tráfico de crianças. Sujeito a uma emboscada no comboio aonde viaja com a sua mais recente vítima, ele é violentamente agredido e atirado para a linha. Muito ferido ele escapa à vontade de um rapaz em lhe esmagar a cabeça com uma pedra e passa pelo café de uma aldeia sem que os assistentes de uma transmissão televisiva de futebol se dignem perder tempo com as suas dores. Se alguma solidariedade lhe é ainda prestada, deve-o a um cão rafeiro, que momentaneamente o acompanha.
O difícil rastejar dele acaba numa praça aonde uma grua o irá atropelar sob o olhar de uma rapariga, que nada faz para lhe evitar tal desenlace.
Estamos, pois, perante mais um exemplo da desumanização desta sociedade em que ninguém ajuda quem está em dificuldades.
No último conto do livro, «O Reduto», Mário de Carvalho coloca-nos na cabeça de um paranóico, que já se separou da mulher e do filho, bem como do emprego, para criar o seu reduto inexpugnável relativamente à imaginária
ameaça de um duque, em vias de invadir a cidade.
O que está aqui em questão é a forma de ver uma realidade, sendo complicada a distinção entre os seus sinais comuns e os que correspondam a uma qualquer excepcionalidade. Para quem se desvia dos padrões normais essa excepcionalidade é criada no intimo não dando hipóteses aos esforços normalizadores de quem o rodeia.
Chega-se assim à última página de um livro, que continua a confirmar a excelência da escrita do autor, dotando-se de uma riqueza vocabular surpreendente, muito embora a imaginação não tenha chegado aos patamares mais elevados, que lhe conhecemos.
Muito embora, já muitos distantes, e só no que diz respeito a contos, Mário de Carvalho surpreendeu-nos bastante mais em «Contos do Beco das Sardinheiras», «A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho» ou «Era uma vez um Alferes».
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