domingo, março 27, 2011

Livro: ORHAN PAMUK, «ISTAMBUL - MEMÓRIAS DE UMA CIDADE» (2)

Um dos aspectos mais curiosos do livro do Nobel turco dedicado á sua cidade natal é a memória grata de uma infância verdadeiramente ensolarada: nos meus instantes de felicidade  - e a minha infância foi preenchida deles  -, não era a minha própria existência que eu sentia, mas o facto de que o mundo era bom, bonito, agradável e ensolarado. (pág. 26)
E, no entanto, era perceptível a decadência de uma cidade, que já vira passadas as suas maiores horas de glória, quando o império otomano aí pulsava no esplendor do seu poderio inquestionável. O jovem Orhan irá crescer num caldo de cultura bem diferente em que o apelo à ocidentalização tem a urgência de se procurar a adequação a um futuro marcado por outros valores:
A tristeza dessa cultura agonizante e desse Império morto e enterrado sentia-se por todo o lado. E parecia-me que o esforço de ocidentalização não provinha tanto da vontade de modernização quanto da angústia da perda desses ornamentos carregados de memórias  dolorosas herdadas do império desmoronado: tal como, para nos livrarmos da lembrança destrutiva de um grande amor subitamente morto, nos desembaraçamos com angústia das suas roupas, das suas jóias, objectos e fotografias. (pág.37)
Mas, mesmo agora, em adulto já envelhecido, o escritor sente essa dicotomia entre o passado mítico e a miséria escondida na escuridão das noites invernosas:
No Inverno, na penumbra da noite precoce, os tons de preto e branco das pessoas que voltam para casa em passo estugado reforçam-me o sentimento de que pertenço a esta cidade e de que partilho qualquer coisa com elas. E tenho a impressão de que o escuro da noite irá cobrir a miséria da vida, das ruas e dos objectos e que, inspirando e expirando no interior das casas, nos quartos e nas camas, todos ficaremos perante os sonhos e as ilusões provindas da antiga riqueza de Istambul, agora tão longínqua, e perante os seus monumentos e lendas perdidos. Gosto também da escuridão das noites de Inverno que desce como um poema sobre os desertos bairros mais afastados apesar dos candeeiros de rua mortiços, porque nos sentimos longe dos olhares estranhos e ocidentais, e porque cobrem como um manto a miséria da cidade de que temos vergonha e que queremos esconder. (pág.43)
E, no entanto, a infância nem sempre era pontuada por momentos de alegria. Com frequência crescente, quer o pai, quer a mãe desapareciam de casa, na sequência dos seus desentendimentos domésticos e Orhan ficava confiado a tios ou a avós:
Na verdade, não derramei muitas lágrimas por causa desses momentos de «desaparecimento» - que me faziam sentir ainda mais vivamente a minha própria existência e a minha solidão, que eu queria esquecer: era por isso que cultivava a parte sombria da minha alma e me divertia - , nem por causa das catástrofes domésticas e das discussões que aconteciam.  (pág. 88)

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