domingo, novembro 01, 2009

«CAIM»: AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Há muito tempo, que leio cada novo romance de José Saramago sem precisar do estímulo de um qualquer escândalo.
Umas vezes mais encantado, outras vezes apenas satisfeito, chego sempre à conclusão do merecimento de um Nobel que outros prefeririam ver atribuído a um rival, quase tão talentoso, mas de feitio assaz desagradável no que revela de invejoso, de mau perdedor.
Não admira que, na mesma manhã, em que foi posto à venda, «Caim» foi a primeira venda do dia na livraria aonde me costumo abastecer de leituras.
Na altura não me passou despercebido o olhar inquisitorial de uma senhora (das tais senhoras que nunca mais, nem nunca mais… no dizer de um célebre poema declamado por Mário Viegas), que me terá execrado com uma fórmula do tipo «vade retro».
Não precisei, pois, de ouvir a Saramago a opinião de como «a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo do pior da natureza humana» para me interessar pela leitura do seu novo romance.
Até porque, no meu ateísmo inabalável, não deixo de reconhecer que «ao longo da História, todas as religiões, sem excepção, fizeram à humanidade mais mal que bem. Todos o sabemos, mas não extraímos daí a conclusão óbvia: acabar com elas.»
A religião como ópio do povo, eis uma fórmula feliz, sobre a qual não poderia estar mais de acordo. De facto «o cérebro humano é um grande contador de absurdos e Deus é o maior deles».
Infelizmente foi forçoso reconhecer que entre as posições cretinas de uns - um anónimo deputado europeu do PSD ou de um Vasco que nunca foi P
pulido nem valente - e as incompreensíveis de outros (porque se veio misturar Zimmler neste assunto? - «Caim» arrisca-se a ser mais escalpelizado enquanto motivo de um escândalo literário do que como obra de grande valia como as primeiras setenta páginas já mo estão a demonstrar.
Honra seja feita a alguns clérigos, que contestando teologicamente as interpretações saramaguianas, não deixaram de o ler o romance e até de o considerarem muito bem escrito. Na realidade a maioria dos detractores do nosso mais ilustre escritor são tão incultos, que se mostram capazes de condenar algo sem sequer se informarem do que dele consta.
Nessas setenta páginas já houve tempo para deus expulsar Adão e Eva do paraíso, como se não estivesse nos seus poderes a capacidade de ter evitado essa queda do par humano no pecado ou para instigar o assassinato de Abel por Caim ao aceitar do primeiro as oferendas e recusado as do segundo, suscitando assim o pecado da inveja.
Mau carácter, sem dúvida. Nada daquela imagem benemérita, que nos quiseram vender sob o manto da bondade extrema. Pelo contrário estranhos desígnios, que acarretaram tantos crimes e tanta injustiça à sua pala.
Valerá a Caim o negócio feito com o seu cúmplice no cenário do crime ao partir para uma errância, que o levará ao país de Nod, aonde começará como pisador de barro e acabará a emprenhar Lilith no seu leito de dona da cidade, escapando-se pelo meio à conspiração de Noah, o marido enganado, que acabará por adoptar como seu o filho assim gerado.
Será um dos melhores Saramagos? Quase a chegar a meio desconfio que não: o «Memorial» ou o «Ensaio Sobre a Cegueira» estão num patamar muito superior. Até mesmo o recente «A Viagem do Elefante».
Mas que não desmerece do que de melhor tem a obra do autor, lá isso não!

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