sexta-feira, setembro 28, 2007

~Milan Kundera: «A mamã»

Que falta de sentido de oportunidade teve a mãe de Karel, quando decidiu passar uns dias em casa do filho e da nora noutra cidade situada na extremidade oposta do país. Sobretudo, quando será suposto regressar no sábado e se decide a prolongar a estadia até segunda-feira.
Ora, Karel e Markéta recebem nesse domingo uma amiga, Eva, com quem costumam concretizar os fantasmas eróticos, que os agitam: o adultério, o lesbianismo, a simples sedução de um corpo distinto do conjugalmente convencionado…
Mas qualquer deles já está saturado desses jogos, encetados há já uns anos. E vêm ao de cima outras tentações: em Karel o do corpo de Nora, uma mulher mais velha, cuja recordação resgata da infância com uma força, que não se deixa diluir mesmo após a saber agora velha e cega…
Marketa constata em si o sofrimento de saber Karel incapaz de resistir à tentação da infidelidade com outras mulheres de cuja existência se limita a suspeitar e sente crescer em si o desejo de libertação quanto a uma relação cada vez mais contraditória entre esse sofrimento e o amor ainda persistente por ele.
Eva, por seu lado, sente o prazer da perversão em que assume papel central, mas já perspectiva outra forma de triângulo: o que terá por vértices ela, o seu próprio marido e Marketa, excluindo assim Karel.
Quem acaba por se sentir mais satisfeito com o fim-de-semana é Karel: ele “sabe muito bem que em mil ou três mil actos de amor (quantas vezes fez amor ao longo da vida?) só dois ou três permanecem verdadeiramente essenciais e inesquecíveis, enquanto os outros não passam de rodeios, imitações, repetições ou evocações. E Karel sabe que o amor de ontem é um desses dois ou três grandes actos de amor, e sente uma imensa gratidão.”
Este conto inserido em «O Livro do Riso e do Esquecimento» insere-se naqueles textos do autor checo em que os impasses do quotidiano vivido em regime de partido único encontram alguma catarse numa libertinagem clandestina e insatisfatória.

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