quinta-feira, dezembro 10, 2020

(AV) Demónios e sombras

 

1. Curiosa a personalidade de Gérard Garosute, artista francês com uma biografia recheada de paradoxos: filho de um ódios pequeno-burguês, dono de uma loja de mobiliário, que se apossara de muitos dos haveres dos judeus enviados de Drancy para os campos da morte nazis ele execrou esse progenitor assumidamente de extrema-direita e antissemita. Razão para ter desposado uma colega de liceu comunista e de origens judaicas ou de, mais tardiamente, ter-se convertido ao judaísmo. Mas, pelo meio, viveu crises delirantes que o enclausuraram em manicómios, seguindo-se longas depressões nervosas, que obrigam-no a ainda manter acompanhamento psiquiátrico.

Philip Starck, um dos amigos mais próximos, confessa o medo de ter-lhe presenciado algumas crises em que o via manifestamente a replicar as transformações em tempos associadas às dos lobisomens.

Não admira que a sua arte, entre o figurativo e o surrealismo, constitua uma longa catarse dos demónios interiores, que sempre o têm apoquentado.

2. Nesta semana em que Lourdes Castro completou 90 anos na Madeira - onde se voltou a radicar depois de muitos anos passados na Alemanha e em França - houve quem a seu propósito evocasse Peter Schlemihl, o personagem de Albert von Chamisso, que vendera a sua sombra ao Diabo e depois correra o mundo a procurar reavê-la por sentir o quanto a falta dela o segregava do mundo dos seus contemporâneos. Uma das frases que ouvi foi a da artista madeirense ter conferido nos seus trabalhos uma renovada dignidade às sombras.

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