segunda-feira, junho 24, 2019

(VOL) Recordar Josephine Baker


Personalidade admirável, a de Josephine Baker, que atravessou o Atlântico para se tornar na coqueluche de Paris com o bambolear selvagem das ancas, por muitos interpretado como expressão eroticamente selvagem.
Destino improvável para uma mulher que, em criança, sofreu os aspetos mais abjetos da segregação racial num Missouri ainda imbuído da cultura esclavagista onde era natural a contratação de crianças negras para servirem de criadas nas famílias brancas. Foi o que sucedeu com Josephine aos sete anos a instâncias da própria mãe.
Inconformada, a rapariga aproveitou a passagem de uma companhia de teatro ambulante por St. Louis para, com 13 anos, zarpar o mais longe possível.  Os dois casamentos que contraiu e dissolveu num ápice explicam essa ânsia de liberdade e não saber como a alcançar.
Chegada ao Harlém anseia destacar-se como bailarina, mas o melhor que consegue é emprego de costureira. Mas, quando a deixam pisar o palco, o sucesso é imediato e dá-lhe confiança para aceder a um convite e vir para a surpreendente Europa: nesse ano de 1925 todos a tratam como igual sem lhe olhar para a cor. Algo que jamais constatara nos Estados Unidos.
Dançando com os seios nus Josephine depressa ganha estatuto de vedeta no mundo do music-hall por muito que os movimentos improvisados ao som da música nos pareçam demasiado extravagantes à distância de quase um século. Quando atua com um colar de bananas em torno do ventre não escapa aos mais argutos a capacidade de ter desmontado um símbolo racista substituindo-o pela notória conotação fálica. Os surrealistas, Colette e Picasso elogiam-na com o pintor catalão a considera-la a Nefertiti dessa época.
Vivia-se no turbilhão do pós-guerra em que se dançava e bebia imoderadamente numa histeria coletiva destinada a esquecer o que ficara para trás. E Josephine conhece Pepito, aventureiro italiano, que se torna seu empresário, amante e autor de uma linha de cosméticos tendo-a como imagem de marca. Época de extravagâncias, data de então o costume dela passear-se pelas ruas de Paris com um leopardo pela trela.
As digressões encadeiam-se umas nas outras com êxitos retumbantes, que quase ganham forma de tumulto em Praga com milhares de pessoas a quererem-na ver e tocar. Mas em Viena impera o discurso moralista comandado pelo ódio racista.
Julgando-se salvaguardada pelo sucesso europeu arrisca uma digressão ao país natal mas, em 1936, nada mudara com as críticas aos espetáculos na Broadway a serem-lhe negativas, quanto muito complacentemente paternalistas. Dececionada regressou a Paris quando outra notícia a afeta negativamente: a morte de Pepito vitimado por um cancro no estomago.
Reinventa-se ao casar com um industrial, Jean Lion, mas depressa compreende que a vida de casada não condiz com a ânsia de ser livre. Abortando do filho de ambos, decide divorciar-se e voltar aos palcos.
Não tarda que a guerra se declare e, desde cedo, trabalha clandestinamente para as Forças Francesas Livres, levando consigo um alto quadro da Resistência como seus assistente nas tournées  - uma delas a Lisboa!
Em 1942, quando os Aliados ocupam Marrocos, ela já aí surge a cantar para os soldados e a apelar à luta contra os nazis. Razão para ser medalhada em 1945 como heroína da Resistência francesa. Mas nem essa condição lhe garante melhor recetividade em Nova Iorque, quando ali regressa depois da guerra: casada com o chefe de orquestra Jo Bouillon não consegue com ele pernoitar pelos receios da gerência em ver-se confrontada pelos clientes com aquela demonstração de «promiscuidade racial». Seis anos depois, em nova tournée, impõe as condições como será recebida, conseguindo êxito em Miami, Las Vegas e na sua cidade natal. Mas porque denuncia o racismo sempre que pode, vê-se expulsa pelo FBI, que a acusa de simpatias comunistas e pressiona as autoridades dos países latino-americanos, para onde prosseguiria a sua digressão, a boicotarem-na ativamente. Mas, em 1963, Robert Kennedy rasga a proibição de voltar a pisar solo norte-americano, facilitando-lhe a honra de ser a única mulher a discursar no palanque da Marcha sobre Washington liderada por Martin Luther King. Proclama à boca cheia ser esse o dia masi feliz da sua vida.
Os anos que se seguem ser-lhe-ão difíceis, porque crescem as dívidas e vê-se desapossada do castelo onde educava os doze filhos adotivos, todos de etnias distintas. Jean-Claude Brialy ajuda-a, contratando-a para o cabaré que abrira em Paris, mas é Grace Kelly a providenciar-lhe efetivo apoio para que escape a miserável desiderato.

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