quarta-feira, junho 12, 2019

(DL) A indissociabilidade das obras em relação à biografia dos autores


Na ilusória primavera marcelista os meios estudantis andaram entusiasmados com alguns intelectuais, tidos como antifascistas ou, pelo menos, com ideais de esquerda. Entre estes últimos figurava o cineasta Elia Kazan, que tanto enlevava os corações sensíveis, comovidos com os contornos de mais uma enésima versão de «Romeu e Julieta» protagonizada por Natalie Wood e Warren Beatty. «Esplendor na Relva» enchia a sala do Monumental (e que grande era!), quando integrava os ciclos de filmes apresentados às seis e meia da tarde. Na altura seriam muito poucos os que conheciam o torpe comportamento de Kazan na época da caça às bruxas em Hollywood, denunciando amigos como comunistas, condenando-os ao desemprego e ao suicídio (como sucedeu com John Garfield!).
Outro desses equívocos era Cesare Pavese, escritor italiano de quem se enfatizava o sofrimento íntimo que o levara a matar-se em 1950. Os poemas e romances andavam de mão em mão e ai de quem se escusasse a reconhecer-lhe o génio. E, no entanto, esse fora o «antifascista», que Mussolini condenara ao degredo no sul de Itália e aí vivera sofrido desenraizamento, que não compreendia, porquanto, se costumava frequentar a casa de Leone Ginzburg, líder do movimento clandestino «Justiça e Liberdade», era por não ter melhor serventia para as noites em que se sentia sozinho e lhe dava jeito a tertúlia mais à mão. Resultado: em 1937, ao regressar a Turim, apressa-se a pedir perdão ao ditador pela sua imprevidente conduta.
Estes dois exemplos são reveladores de como, na época, distribuidores de filmes e editores literários contribuíam para equívocas mistificações, não faltando, igualmente, quem na época exaltava o génio de um tal Pitigrilli, elogiado como intelectual espirituoso, com frases certeiras sobre os mais variados assuntos, mas que fora o infiltrado pela polícia política do Duce dentro do movimento liderado por Ginzburg para conseguir com que todos quantos o integravam fossem presos e vissem assim neutralizado o empenhamento antifascista.
Todos estes casos são reveladores de como constitui afrontosa falácia a ideia de se justificar a dissociação entre a obra e o seu criador. Por muito bem que Céline ou Hamsun escrevessem não pode esquecer-se como se comportaram perante o nazifascismo. Kazan merece um ódio de estimação tão significativo quanto o devido a Ronald Reagan ou a Walt Disney, que se arvoraram em inquisidores-mor nesse período tenebroso vivido em Hollywood.
No mais recente livro de Le Clézio o autor do prefácio lembra que ele costuma deslocar-se em viagem com os livros, que anda a ler e com o manuscrito do momento. E este, independentemente do que venha a ter, possui sempre um título provisório, vertido nas duas línguas natais do autor: My Soul / Ma Vie. E essa é a realidade de quem cria obras artísticas: nelas sempre verte quem é.
Ora, perante qualquer proposta cultural, como ignorarmos quem a assina e se comportou no que mais importa: quis ajudar a Humanidade a avançar ou a cristalizar-se nos seus maiores defeitos? E essa é uma linha de diferenciação, que consagra muitos criadores, mas exclui outros mais.

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