domingo, janeiro 21, 2018

(DL) Viver no Dondo no final do século XIX

Passaram vinte cinco anos sobre a primeira edição de «A Feira dos Assombrados», livro de novelas e contos de José Eduardo Agualusa, que nos projeta para a realidade do interior angolano nos finais do século XIX.
Existe a tentação de olhar para aquela vastidão africana como se só tivesse existido, quando ali chegaram os portugueses e começaram a ali impor os padrões da sua suposta civilização cristã, mas a realidade foi tragicamente outra: esse acontecimento coincidiu com o comércio esclavagista, que obrigou à travessia oceânica de muitos milhares de vítimas do sórdido negócio. E, quando ele ficou proibido, logo emergiu o do marfim, que tantos elefantes chacinou. Não admira que na novela, que dá título ao livro, há pouco reeditado, se expanda a ideia entre a população local em como teriam sido paradisíacos os tempos anteriores à chegada dos europeus.
É na época em que a Monarquia está a conhecer a sua irreversível decadência, com os ingleses a imporem-lhe o Ultimato, que Agualusa situa a sua história introduzindo nela algumas das características do realismo mágico latino-americano. Numa pequena vila situada nas margens do Cuanza - o Dondo, que também foi o nome do primeiro navio mercante onde iniciei carreira na Marinha Mercante! - começam a surgir estranhos afogados, sucessivamente mais afastados da forma que havia sido sua enquanto seres vivos. Como não tem a certeza se seriam seres humanos, se outros de natureza maléfica, o padre recusa-lhes a inumação no cemitério e a proceder-lhes às exéquias.
Cresce, dias a fio, a disputa entre o major Santoni, chefe do concelho, e o pároco dado a simpatias socialistas, mas paradoxalmente, muito cioso da distinção entre o sagrado e o profano. Razão para a vila  se dividir entre os partidários (poucos…) do major e os do padre, que arregimenta do seu lado a maioria, mais expectante do que ativa. De permeio vão surgindo outros personagens não menos singulares, que estão ou já estiveram presentes naquele espaço, e nele deixaram memória controversa: o mágico brasileiro capaz de pôr as pessoas a pairar acima do chão, o morto que permanece igual ao que era, quando vivo, e que por isso não é sepultado pelo filho; a bela mulher do major, Angelina, que efeitos tão persuasivos exerce na mente libidinosa dos homens locais; o professor já velho, mas incorrigível sedutor, apostado em fazer sua a mulher alheia; o rapaz que fora criado pelos macacos da beira do rio e que com eles privara até se ver sacrificado por ser considerado filho do Demo.
Dura semanas o impasse relativamente ao destino a dar aos cadáveres, cujo cheiro nauseabundo sobe do sítio onde se acumulam e é trazido pela brisa até à vila. Só a manifestação de força do major acaba por romper esse equilíbrio instável com a reconciliação final das partes desavindas a ser assegurada pela notícia da iminente chegada do comboio à região.
Tratando-se de uma das primeiras obras do autor ainda não comportava a ambição de outras, que tanto nos sugestionaram e nos deram retrato complementar a essa Angola rica em histórias merecedoras da tradução ficcional. Pode ser considerado um muito agradável aperitivo a mais suculenta demonstração de criatividade literária.

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