sábado, janeiro 27, 2018

(DL) O deplorável tio-avô de Javier Cercas

No primeiro capítulo de «O Monarca das Sombras» Javier Cercas afiança nunca ter desejado abordar a vida de Manuel Mena, o tio-avô falangista, que morrera ao serviço da insurreição franquista.
Compreende-se essa intenção: confessar a familiaridade genética com um fascista não serve de cartão de visita a ninguém. São raros os relatos autobiográficos dos filhos de nazis e  de outros facínoras que tais. Os conhecidos ora os tentam desculpabilizar atribuindo-lhes um envolvimento menos comprometedor com os crimes perpetrados do que o documentado, ora deles se dissociando violentamente para fazerem crer que a condição hedionda não se transmite pelos genes.
A verdade é que o escritor espanhol acabou por dedicar um romance - o seu mais recente! - a esse familiar mal reputado. Talvez porque a mãe sempre adorara o tio como alguém de quem, da meninice, guardara boas recordações, talvez por, através dele, voltar a proceder à radiografia de um passado ainda com grandes influências nos nossos dias. Ou não serão os comportamentos de Rajoy e do entronado Bourbon a propósito da Catalunha a manifestação de uma herança ainda por eliminar pelos que se viram derrotados em 1939?
Cercas costuma servir-se de outros romances e filmes na construção da sua própria narrativa. Nas primeiras páginas já lidas referencia dois: «O Deserto dos Tártaros» de Dino Buzzati, serve-lhe para desenvolver um paralelismo com a progenitora. A exemplo de Giovanni Drogo, que fora destacado para uma fortaleza distante onde deveria incumbir-se da defesa contra os invasores asiáticos, a mãe do autor transferira-se da província estremenha, onde a família de origem tinha um estatuto quase senhorial, para a catalã Girona, onde o marido arranjara emprego razoavelmente bem remunerado, mas onde só se podiam enquadrar numa pequena burguesia indiferenciada dos demais. Exilada da terra natal, ela vira a vida escoar-se sem nela fazer outra coisa senão esperar. Esperar pelo marido e pela caterva de filhos, que lhe iam nascendo e prendendo ao lar.
A outra referência utilizada por Cercas é «A Aventura», o filme de Antonioni, que essa mulher de idade avançada considerara o melhor filme alguma vez por si visto. Por uma razão: a personagem que é deixada na ilha onde decidira passear e prontamente esquecida pelos parceiros do cruzeiro em que participava, dali zarpando sem voltarem a preocupar-se com o seu desaparecimento, leva-a a reconhecer a rapidez com que se esquece quem morre. E esse era o motivo de pesar que a levava a lamentar o quanto já quase ninguém recordava esse Manolo, tombado numa batalha sem sequer ter tido tempo para lhe crescerem no rosto os pelos da barba. Motivo de sobra para Cercas decidir dar o dito pelo não dito e dedicar-se à biografia do deplorável tio-avô.

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