terça-feira, março 10, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «Os Dias de Davanzati» de Hector Abad Faciolince

Imaginativa é, indubitavelmente, a ideia de partida do romance de estreia do escritor colombiano.
O narrador vai viver para o parque de Laureles, em Medellin, e logo sente curiosidade pelos hábitos de misantropo de um ancião, que vive no andar por cima do seu e a quem vai espiando quase por acaso.
Porém, quando descobre tratar-se de Bernardo Davanzati, um autor de críticas literárias no «El Espectador» há vinte anos e de dois romances, de escasso sucesso, publicados mais ou menos pela mesma altura, esse interesse ainda mais se empola, tanto mais que Davandazi continua a escrever, deitando para o lixo o labor da sua criatividade.
Eis que o narrador passa a visitar diariamente o contentor do lixo, situado na cave do prédio, para respigar as páginas escritas a lápis pelo singular autor.
Um dos contos, que encontra, tem por título «Balada do Velho Decrépito» e é a confirmação de como um autor acaba sempre por escrever variações da sua autobiografia por muito que a ela queira escapar. No caso daquela história temos um velho, que abandonara a família para se dedicar à relação amorosa com uma rapariga com idade para ser sua filha. Quando, três anos depois, lhe surpreende uma conversa com uma amiga, em que ela o diz odiar por repugnância, decide partir para muito longe dali, transferindo todo o dinheiro para uma conta em Miami e projetando viver numa permanente e anónima  errância pelo mundo. No fundo uma variante da mesma misantropia, que anima Davanzati.
Noutras alturas escreve sobre presunções futuras, como a de imaginar possível a época em que a bisneta viverá num tempo em que as cabeças passarão a ser transparentes umas para as outras, ou seja, todos saberão o que pensam os namorados, os amigos, os simples interlocutores. Seria, pois, uma Terra sem mentira. Mas, ele próprio põe a dúvida: se todas as civilizações se construíram na base de tantas mentiras, seria possível que, sem elas, tal tipo de sociedade perdurasse?
Mais demorado parece ser o esforço em redigir um romance intitulado «Rebus», que confirma ter na sua própria biografia o grande tema de eleição: um grupo de pseudo intelectuais de Medellin dispõe-se a criar uma revista com esse nome, evocativo de rascunhos, esboços, etc. Entre eles está Serafin, que além do pormenor de ter deficiência num pé, também se vê em vias de perder a mulher, Debora cujos amores transitaram para um clarinetista.
A mediocridade  de quem tem pretensões, mas não muito talento e a tendência para ver a solidão como uma inevitabilidade são as que se parecem ajustar, como uma segunda pele, a Davanzati.
Até ao seu desaparecimento definitivo, imitando o projeto do velho decrépito do conto inicial, o narrador secundariza, amiúde, o  emprego de jornalista para se dedicar à recolha dessas páginas, cada vez mais esparsas e caóticas no que refletem do que pensa o autor.
Homenagear Davanzati acaba por ser o objetivo do narrador, que transforma em antologia tudo quanto dele conseguiu salvaguardar. A recolha de uma prosa de qualidade ambígua, mas capaz de se converter num consistente projeto literário. 

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