sábado, março 07, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «Anais de Pena Ventosa» de Pedro Eiras (VIII)

“Até que ponto o homem é homem; desde que momento, e que é ser homem? E se o homem se faz demónio, quando perde a humanidade? Ou permanecerá homem e demónio? E a mulher? Transforma-se em fazedora de Mal, ou o pecado é inerente à sua natura? Não saberia dizê-lo, e não o encontro nos Livros”. (pág. 288)
Estamos a entrar nas últimas cem páginas do romance de Pedro Eiras e encontramos o jovem Bonifácio a contas com mais dúvidas do que certezas a respeito dos dogmas, que a religião tenderia a inculcar-lhe.
Mas não são só as questões teológicas a inquieta-lo: uma noite põe-se à espreita nas obras de construção da nova catedral e conclui da veracidade do que lhe contara o pai do seu amigo Silvestre: nos subterrâneos situados por baixo do estaleiro da obra existe um túnel para onde vê Dom Hugo esgueirar-se.
Que se esconderá ali de tão interessante, capaz de justificar a atividade clandestina do seu bispo?
Está, de facto, a entrar numa idade de grandes inquietações, e uma delas é a da pulsão sexual que sente em si despertar. Quando a confessa a Dom Gonçalo este dá-lhe uma receita depressa demonstrada na sua falibilidade: “Rezei de cada vez que me deitava para dormir, com fervor sincero, tentando sentir os textos, se os lembrava, ou outros semelhantes. Não posso dizer que os compreendesse sempre; e alguns eram mui vagos para neles achar matéria que veramente compreendesse. Adormeci, ainda assim, seguro, protegido pelo escudo das rezas e da desejada castidade. Mas a personagem feminina voltou, mais encantadora ainda e apetecível, em sua nudez sem pejo ou medo.” (pág. 308)
O ano já é o de 1119 e Bonifácio instrui-se sobretudo em casa do Herbanário onde assiste a discussões acaloradas entre ele, Dom Hilário e o abade Boaventura sobre religião e ateísmo. E é esta última escola de pensamento - a do anfitrião - que mais acaba por o seduzir: “Há na Terra suficiente para alimentar cada boca, apenas falta repartir. Já estive disposto a recorrer à violência para tal fim, hoje acredito que a generosidade seja possível e conseguida na paz. Mas o conceito de Deus não tem que ser invocado. A caridade deve ser laica.” (pág. 322)
Essa defesa de um comunismo primitivo perturba seriamente Bonifácio: “Esta foi sem dúvida a mais bela noite da minha vida, e também a mais assustadora e a mais impressionante. E tão forte que alterou para sempre tudo o que penso e sinto, e o sentido da minha existência.” (pág. 324)
Quando consegue entrar no túnel onde vira Dom Hugo internar-se e quase nele se perder, Bonifácio compreende na plenitude o que ouvira em casa do Herbanário: “Apenas eu existia. A sensação percorreu-me sem piedade, crua e agreste, como uma chuva, um vento. Deus não era comigo - era a Solidão, e também não era ali o Demónio. Nem Bem ou Mal me perseguiam, nem Trevas ou Luz. Apenas a substância do espaço era concreta, verdadeira, - apenas nela eu podia crer.” (pág. 332)

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