Sou decididamente contra as vacas sagradas, mas compreendo a reação inicial de Daniel Hope, quando Max Richter falou-lhe do projeto de recriar as “Quatro Estações” de Vivaldi. "Há algum problema com o original?", perguntou-lhe, mas logo se dispôs a ser cúmplice nessa aventura, que transporta a obra setecentista para a sonoridade do século XXI.
O gesto de Richter não nasceu de irreverência gratuita, mas de uma perceção aguda: as “Quatro Estações” tinham-se tornado demasiado familiares, quase banais, dissolvidas no excesso de execuções, arranjos e usos triviais. O que outrora fora uma obra vibrante, feita de surpresas e contrastes, corria o risco de ser ouvida apenas como pano de fundo. Era, por assim dizer, uma peça célebre que todos conheciam mas já poucos escutavam.
Foi contra essa indiferença que Richter se levantou. Não quis “corrigir” Vivaldi, nem substituir a partitura, mas criar um espaço de escuta renovada. A estratégia foi radical: eliminar cerca de três quartos do material original e, com o que restava, reinventar a música segundo a sua própria gramática — feita de repetições hipnóticas, deslocamentos harmónicos e uma subtileza eletrónica que mergulha o ouvinte numa espécie de névoa temporal. O passado e o presente deixam de ser opostos; antes fundem-se num mesmo gesto.
A polémica foi inevitável. Para alguns, tocar em Vivaldi era um sacrilégio, como se certas obras estivessem fora do alcance da transformação. Mas, ao mesmo tempo, muitos reconheceram no projeto uma oportunidade rara: a de reencontrar a essência da obra através da mediação de outro criador. Richter não nega a tradição; dialoga com ela. E nesse diálogo, Daniel Hope desempenha um papel essencial, oferecendo ao violino uma voz que ora ecoa o virtuosismo barroco, ora se deixa enredar pela pulsação minimalista do século XXI.
O que se revelou, afinal, foi que a recriação não destrói o original, mas devolve-lhe vitalidade. Tal como acontece com os grandes mitos, que sobrevivem às inúmeras versões porque cada geração encontra neles algo novo, também as “Quatro Estações” renasceram em 2012 com esta metamorfose. O êxito da obra — traduzido em críticas entusiásticas, salas cheias e ouvintes de fora do circuito clássico — mostra que a reverência não é a única forma de respeito: reinventar pode ser uma forma de homenagem.
No fundo, Richter convida-nos a repensar a própria relação com os “clássicos”. O que é mais fiel à sua grandeza? Conservá-los intactos, como relíquias, ou deixá-los respirar, aceitando que cada época projeta sobre eles novas luzes? Talvez a resposta esteja no próprio efeito que a sua versão provocou: a de nos obrigar a escutar Vivaldi de novo, como se fosse pela primeira vez.
Sem comentários:
Enviar um comentário