O Beijo do Hotel de Ville (1950) é provavelmente a fotografia mais célebre de Robert Doisneau. A imagem a preto e branco de um casal a beijar-se apaixonadamente numa rua de Paris, junto ao Hotel de Ville, tornou-se um ícone universal do romantismo francês. Reproduzida em milhões de postais e posters a partir dos anos 1980, esta fotografia chegou a bater recordes mundiais de tiragem, com 410.000 exemplares impressos em 1986.
Contudo, a história por detrás desta imagem revela o método artístico de Doisneau e o contexto de uma época. Longe de ser um momento espontâneo capturado ao acaso, a fotografia foi, na verdade, uma encenação. Doisneau recebera uma encomenda da revista americana Life para ilustrar o tema "o amor em Paris na primavera", e ao avistar um casal de jovens estudantes de teatro num café — Françoise Bornet e Jacques Carteaud — propôs-lhes que posassem para ele, mediante o pagamento de 500 francos da época. O beijo foi encenado, mas o cenário à volta — os figurantes, as mesas de café, a luz da cidade — era genuinamente parisiense. Doisneau construía assim uma verdade poética a partir de elementos reais, um método que caracterizou toda a sua obra de fotojornalismo humanista.
Mas Robert Doisneau foi muito mais do que o autor de uma imagem romântica. Antes de tornar-se cronista da vida parisiense, Doisneau foi um homem da Resistência. Durante a ocupação nazi da França, entre 1940 e 1944, juntou-se ao movimento clandestino que combatia os ocupantes alemães e o regime colaboracionista de Vichy. Utilizando as competências como fotógrafo, documentou a resistência, a ocupação e, finalmente, a libertação da França. Numa época em que cada fotografia podia significar a diferença entre a vida e a morte — tanto para quem fotografava como para os fotografados —, Doisneau colocou a arte ao serviço de uma causa que transcendia o estético: a luta pela liberdade.
Até 1940, servira o exército francês. Com a derrota e a ocupação, escolheu o caminho da clandestinidade. As suas imagens desse período constituem um testemunho histórico fundamental, mas também um ato de coragem. Fotografar a Resistência era fotografar o indizível, o que não podia ser mostrado sob pena de represália brutal. Era transformar a câmara fotográfica numa arma silenciosa mas poderosa de memória e de luta.
Após a guerra, o compromisso político de Doisneau não esmoreceu. Aderiu ao Partido Comunista Francês e à CGT, a histórica central sindical francesa, partilhando as esperanças e as lutas de reconstrução de uma França devastada. A sua fotografia refletiu sempre essa sensibilidade de esquerda: os trabalhadores, os bairros populares, as crianças das periferias, os pequenos comércios, os cafés de bairro. Doisneau fotografava as pessoas comuns com uma dignidade e uma ternura que nunca as diminuía. Ao contrário, celebrava a beleza e a humanidade dos gestos quotidianos, a poesia escondida nas ruas de Paris.
Esta visão humanista não era apenas estética. Era também política. Num mundo dilacerado pela guerra e pela desigualdade, Doisneau escolheu fotografar aqueles que, habitualmente, ficavam invisíveis. Em 1946, iniciou a colaboração com o semanário Action, e a sua lente captou greves, manifestações, mas também momentos de alegria e de resistência cultural. A sua militância comunista não era dogmática: era a expressão de uma crença profunda na dignidade do povo, no valor do trabalho, na beleza da solidariedade.
Há quem critique Doisneau por encenar muitas das suas fotografias, vendo nisso uma traição à "verdade" documental. Mas essa crítica ignora a essência do seu projeto artístico. Doisneau sabia que toda a fotografia é, em certo sentido, uma construção. O que o interessava não era capturar um suposto "real" objetivo, mas criar imagens que revelassem uma verdade emocional, uma verdade sobre a condição humana. O beijo encenado do Hotel de Ville diz mais sobre o amor e sobre Paris do que mil fotografias "espontâneas" poderiam dizer. E as suas imagens da Resistência, mesmo quando tecnicamente imperfeitas, testemunham a época com uma força que nenhum relato abstrato poderia igualar.
Robert Doisneau faleceu em 1994, poucos dias antes de completar 82 anos. Deixou um legado imenso: não apenas de imagens icónicas, mas o modo de olhar o mundo que atravessou a escuridão da guerra e da ocupação nazi, se comprometeu com a causa dos trabalhadores e dos oprimidos, e nunca deixou de acreditar na beleza possível — mesmo encenada, mesmo construída — da vida humana. O beijo do Hotel de Ville é, no fundo, um beijo de esperança: a que levou um jovem fotógrafo a arriscar a vida para mostrar ao mundo que Paris, e a humanidade, podiam voltar a sonhar.
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