quinta-feira, outubro 23, 2025

À procura de um tempo suspenso

 

Confesso que, apesar de partir para cada filme de Margarida Gil com a melhor das predisposições para deles me agradar, a sensação que me deixam é de algum desconcerto. No caso de "Mãos no Fogo" (2024) temos uma jovem documentarista apostada em recolher imagens para a demonstração de um mundo que, ainda real, é sobretudo fantasmático por ter a ver com um passado cristalizado no tempo e já sem qualquer ligação com o presente. Mas que pode transformar-se numa armadilha perigosa...

Maria do Mar, jovem estudante de cinema interpretada por Carolina Campanela - nome que evoca, não por acaso, o clássico mudo de Leitão de Barros -, está a acabar um documentário sobre os velhos solares do Douro que servirá para sustentar a sua tese sobre o Real no Cinema. Mar tem uma confiança ilimitada no "visível" e a candura, a par da ingenuidade, também a inclinam para ver o lado bom das coisas: a beleza da paisagem, o que ainda há de genuíno nas pessoas e seus costumes. Contudo, depressa se apercebe que o que se vive dentro daquela mansão não é assim tão inocente. Trata-se de uma verdadeira casa de horrores, onde o passado não é apenas memória mas presença opressiva e potencialmente destrutiva.

É aqui que Margarida Gil revela a fidelidade à ambiência de Henry James: a capacidade de transformar casas antigas em organismos vivos, carregados de segredos inconfessáveis, onde a inocência de quem chega de fora confronta-se com uma decadência que é simultaneamente social, moral e psicológica. A ambiguidade jamesiana está presente em cada plano, nessa zona cinzenta onde não se sabe ao certo se o perigo é real ou imaginado, se o que vemos é documento ou fantasmagoria. A própria Mar, armada com a sua câmara e crença no real, descobre que há realidades que a objetiva não consegue capturar - ou que, capturando-as, revelam mais do que seria desejável.

A fotografia de Acácio de Almeida continua exemplar, como sempre. Ele sabe filmar esses espaços carcomidos pelo tempo, essas paredes onde a humidade e a História se confundem, esses interiores sombrios que contrastam com a luz do Douro lá fora. Há uma cena de banho no rio entre Campanela e Francisco Vistas que dialoga diretamente com o filme mudo homónimo, mas Acácio transforma esse momento erótico numa suspensão temporal - como se, por instantes, fosse possível escapar ao peso daquela casa, daquele passado que insiste em não passar.

O desconcerto que o filme provoca talvez venha precisamente desta tensão nunca resolvida: Margarida Gil nunca sentiu que teria de pedir licença para filmar aquilo que queria, aquilo que via através da câmara. "Mãos no Fogo" é um filme de risco assumido por quem deseja recentrar o olhar no cinema, em vez do audiovisual, do streamer ou algo equivalente. Mas esse risco implica deixar o espectador num território incerto, entre o documental e o gótico, entre a tese académica de Mar sobre o real e a descoberta perturbadora de que o real, afinal, pode ser a mais perigosa das ficções. Com os atores da saudosa Cornucópia a habitarem aqueles espaços com a intensidade de quem conhece os textos por dentro, o filme transforma-se numa reflexão sobre o próprio ato de filmar - e sobre os perigos de apontar a câmara para lugares onde o passado ainda respira.

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