Numa altura em que cresce a importância política de quem olha para a História portuguesa e a vê como uma sucessão de atos heróicos em prol da civilização dita cristã, o cinema anda, a contracorrente, a dar-lhe a outra versão, a verdadeira, que é a de sermos um país com um sinistro cadastro de escravização dos povos africanos e da rentabilização do seu trabalho ou da sua venda.
"Banzo", de Margarida Cardoso, é um dos exemplos mais recentes e contundentes deste cinema que não desvia o olhar. Ambientado em 1907 numa ilha tropical africana - São Tomé e Príncipe -, o filme parte de um fenómeno real e devastador: o banzo, termo derivado de "mebanza" do quimbundo angolano (que significa casa), designava uma doença que afetava pessoas escravizadas, uma profunda nostalgia que as conduzia a estados de prostração e, finalmente, ao suicídio. Vários trabalhadores, depois de terem perdido o gosto pela vida, entregavam-se à morte através de diversas formas de autodestruição, numa condição que se convencionou chamar "nostalgia dos escravizados".
O contexto histórico é essencial: estamos já depois da abolição oficial da escravatura, mas os sistemas de trabalho contratado para as plantações mantinham exatamente as mesmas práticas opressivas, replicadas em muitos países coloniais com economia de plantação. A mudança de nomenclatura não alterava a realidade: a exploração continuava, apenas com outro nome, outro disfarce legal. E é neste ambiente que Margarida Cardoso coloca o médico Afonso, interpretado por Carloto Cotta, enviado da metrópole para curar um grupo de trabalhadores negros que estão a morrer por causa desta tristeza profunda e inexplicável para a mentalidade colonial.
O filme revela as cicatrizes emocionais e psicológicas deixadas pelo colonialismo, explorando a condição de quem foi arrancado de casa, de quem perdeu a ligação com a terra e com a própria identidade. Afonso tenta compreender as razões desta crise de apatia e melancolia, mas acaba por aceitar ir com os serviçais até um sítio remoto onde era suposto os doentes encontrarem alguma autonomia pessoal. É uma jornada que se revela tanto física como moral, obrigando o médico - e por extensão o espectador - a confrontar-se com a violência sistémica de um império que se recusava a ver-se ao espelho.
Não é por acaso que "Banzo" foi escolhido para representar Portugal nos Óscares 2026 na categoria de Melhor Filme Internacional. É um filme que aborda a herança do colonialismo português em África, revisitando memórias e cicatrizes históricas através de um olhar contemporâneo, com forte componente visual e narrativa intimista. É cinema que funciona como contranarrativa necessária, devolvendo dignidade e complexidade a vidas que a História oficial preferia manter na sombra ou transformar em mera estatística colonial.

Sem comentários:
Enviar um comentário