terça-feira, outubro 28, 2025

Entre a Verdade Histórica e a Amnésia Conveniente

 

"Hiroshima, la véritable histoire" de Lucy van Beek, realizado em 2015, inscreve-se numa longa tradição de documentarismo histórico que procura desmontar as narrativas oficiais sobre o bombardeamento atómico de Hiroshima. Setenta anos após o cogumelo nuclear erguer-se sobre a cidade japonesa, a cineasta propõe-se a separar os factos da propaganda, revelando uma verdade que, para muitos, nunca foi verdadeiramente segredo.

A receção deste documentário divide-se em dois campos distintos, não por ideologia, mas por cronologia biográfica. Para as gerações nascidas após o fim da Guerra Fria, o filme surge como uma revelação incómoda: a América, “paladina da liberdade e da democracia” (sic), teria utilizado 140 mil vidas japonesas como cobaias numa experiência militar a céu aberto. A narrativa sobre a bomba ter "salvo vidas americanas" ao evitar uma invasão custosa desmorona-se perante documentos desclassificados que demonstram que o Japão já negociava os termos da capitulação.

Para quem viveu os tempos da contenção nuclear, porém, o documentário oferece pouca novidade no seu eixo central. Desde os anos 60, historiadores como Gar Alperovitz argumentaram que a decisão de Truman foi mais dirigida a Moscovo do que a Tóquio. O verdadeiro alvo não era o Japão moribundo, mas a União Soviética. Hiroshima foi o primeiro ato da Guerra Fria, não o último da Segunda Guerra Mundial.

O que o documentário expõe com particular eficácia é a frieza das decisões tomadas em Washington. A administração Truman e o Pentágono sabiam da iminência da rendição japonesa. Mas tinham uma janela estreita de oportunidade para demonstrar ao mundo, e sobretudo a Estaline, que os Estados Unidos possuíam agora um poder sem precedentes.

O Japão tornou-se, assim, num laboratório involuntário. Duas cidades foram deliberadamente poupadas dos bombardeamentos convencionais que devastavam o arquipélago precisamente para que os cientistas pudessem avaliar, com precisão estatística, os efeitos da fissão nuclear sobre populações civis em condições "ideais". Hiroshima às 8h15 de 6 de agosto; Nagasaki às 11h02 de 9 de agosto. Duas experiências, duas configurações de bomba, dados científicos inestimáveis.

Mas se a narrativa geopolítica é familiar aos mais velhos, o documentário de van Beek oferece algo que a historiografia convencional raramente explora: o colapso social que se seguiu à atomização da cidade.

Quando a bomba explodiu, não destruiu apenas edifícios e corpos. Destruiu o tecido social, as estruturas de poder, as redes de solidariedade familiar que sustentam uma sociedade. No vácuo deixado pela devastação, emergiram predadores. A yakuza, a máfia japonesa, rapidamente estabeleceu controlo sobre o mercado negro que se tornou a única forma de sobrevivência nas zonas afetadas.

E aqui surge um dos aspetos mais perturbadores revelados pelo documentário: o destino das meninas órfãs. Crianças de oito, nove anos, que perderam famílias inteiras na explosão, ou na radiação subsequente, foram sistematicamente canalizadas para os bairros de prostituição de Tóquio. A tragédia atómica gerou uma indústria de exploração sexual infantil que alimentou-se do desespero e da ausência total de estruturas de proteção.

Este pormenor, raramente mencionado nos manuais de história, revela uma verdade incómoda: as catástrofes não terminam quando as chamas se apagam. Criam ecossistemas de predação onde os mais vulneráveis são consumidos pelos que sabem transformar desgraça em lucro.

A narrativa oficial sobre Hiroshima sofre de uma curiosa forma de amnésia. Lembramos o cogumelo, contamos os que morreram de imediato, falamos da radiação. Mas esquecemos as décadas de sofrimento que se seguiram, não apenas médico, mas social e moral.

Esquecemos porque lembrar seria admitir que a bomba não foi um ato cirúrgico que encerrou uma guerra, mas o início de um longo calvário para centenas de milhares de pessoas. Seria reconhecer que a radiação continuou a matar durante décadas, que as crianças nasceram deformadas, que os hibakusha (sobreviventes) foram marginalizados pela própria sociedade japonesa, que os órfãos foram devorados por sistemas de exploração.

O documentário de Lucy van Beek cumpre, assim, uma dupla função. Para os jovens, desmonta o mito fundador da ordem mundial pós-1945, revelando as decisões cínicas que moldaram o século XX. Para os mais velhos, acrescenta camadas de horror humano a uma história que julgavam conhecer.

Mas ambas as audiências são confrontadas com a mesma questão fundamental: como é possível que um ato desta magnitude moral tenha sido não apenas executado, mas justificado, celebrado, e integrado numa narrativa de heroísmo e necessidade?

A resposta, talvez, esteja precisamente na capacidade de esquecer seletivamente. De lembrar o cogumelo mas esquecer as meninas de oito anos vendidas para bordéis. De celebrar o fim da guerra mas ignorar o início de décadas de sofrimento silencioso.

"Hiroshima, la véritable histoire" não nos dá respostas confortáveis. Apenas obriga a olhar, sem pestanejar, para o que alguns preferiam não ver. E nisso reside o seu maior valor: não na revelação de segredos não tão secretos assim, mas na recusa da amnésia conveniente que permite viver em paz com o impensável.

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