segunda-feira, outubro 13, 2025

Entre a militância e um beijo icónico

 


O Beijo do Hotel de Ville (1950) é provavelmente a fotografia mais célebre de Robert Doisneau. A imagem a preto e branco de um casal a beijar-se apaixonadamente numa rua de Paris, junto ao Hotel de Ville, tornou-se um ícone universal do romantismo francês. Reproduzida em milhões de postais e posters a partir dos anos 1980, esta fotografia chegou a bater recordes mundiais de tiragem, com 410.000 exemplares impressos em 1986.

Contudo, a história por detrás desta imagem revela o método artístico de Doisneau e o contexto de uma época. Longe de ser um momento espontâneo capturado ao acaso, a fotografia foi, na verdade, uma encenação. Doisneau recebera uma encomenda da revista americana Life para ilustrar o tema "o amor em Paris na primavera", e ao avistar um casal de jovens estudantes de teatro num café — Françoise Bornet e Jacques Carteaud — propôs-lhes que posassem para ele, mediante o pagamento de 500 francos da época. O beijo foi encenado, mas o cenário à volta — os figurantes, as mesas de café, a luz da cidade — era genuinamente parisiense. Doisneau construía assim uma verdade poética a partir de elementos reais, um método que caracterizou toda a sua obra de fotojornalismo humanista.

Mas Robert Doisneau foi muito mais do que o autor de uma imagem romântica. Antes de tornar-se cronista da vida parisiense, Doisneau foi um homem da Resistência. Durante a ocupação nazi da França, entre 1940 e 1944, juntou-se ao movimento clandestino que combatia os ocupantes alemães e o regime colaboracionista de Vichy. Utilizando as competências como fotógrafo, documentou a resistência, a ocupação e, finalmente, a libertação da França. Numa época em que cada fotografia podia significar a diferença entre a vida e a morte — tanto para quem fotografava como para os fotografados —, Doisneau colocou a arte ao serviço de uma causa que transcendia o estético: a luta pela liberdade.

Até 1940, servira o exército francês. Com a derrota e a ocupação, escolheu o caminho da clandestinidade. As suas imagens desse período constituem um testemunho histórico fundamental, mas também um ato de coragem. Fotografar a Resistência era fotografar o indizível, o que não podia ser mostrado sob pena de represália brutal. Era transformar a câmara fotográfica numa arma silenciosa mas poderosa de memória e de luta.

Após a guerra, o compromisso político de Doisneau não esmoreceu. Aderiu ao Partido Comunista Francês e à CGT, a histórica central sindical francesa, partilhando as esperanças e as lutas de reconstrução de uma França devastada. A sua fotografia refletiu sempre essa sensibilidade de esquerda: os trabalhadores, os bairros populares, as crianças das periferias, os pequenos comércios, os cafés de bairro. Doisneau fotografava as pessoas comuns com uma dignidade e uma ternura que nunca as diminuía. Ao contrário, celebrava a beleza e a humanidade dos gestos quotidianos, a poesia escondida nas ruas de Paris.

Esta visão humanista não era apenas estética. Era também política. Num mundo dilacerado pela guerra e pela desigualdade, Doisneau escolheu fotografar aqueles que, habitualmente, ficavam invisíveis. Em 1946, iniciou a colaboração com o semanário Action, e a sua lente captou greves, manifestações, mas também momentos de alegria e de resistência cultural. A sua militância comunista não era dogmática: era a expressão de uma crença profunda na dignidade do povo, no valor do trabalho, na beleza da solidariedade.

Há quem critique Doisneau por encenar muitas das suas fotografias, vendo nisso uma traição à "verdade" documental. Mas essa crítica ignora a essência do seu projeto artístico. Doisneau sabia que toda a fotografia é, em certo sentido, uma construção. O que o interessava não era capturar um suposto "real" objetivo, mas criar imagens que revelassem uma verdade emocional, uma verdade sobre a condição humana. O beijo encenado do Hotel de Ville diz mais sobre o amor e sobre Paris do que mil fotografias "espontâneas" poderiam dizer. E as suas imagens da Resistência, mesmo quando tecnicamente imperfeitas, testemunham a época com uma força que nenhum relato abstrato poderia igualar.

Robert Doisneau faleceu em 1994, poucos dias antes de completar 82 anos. Deixou um legado imenso: não apenas de imagens icónicas, mas o modo de olhar o mundo que atravessou a escuridão da guerra e da ocupação nazi, se comprometeu com a causa dos trabalhadores e dos oprimidos, e nunca deixou de acreditar na beleza possível — mesmo encenada, mesmo construída — da vida humana. O beijo do Hotel de Ville é, no fundo, um beijo de esperança: a que levou um jovem fotógrafo a arriscar a vida para mostrar ao mundo que Paris, e a humanidade, podiam voltar a sonhar.

quinta-feira, outubro 02, 2025

Vivaldi revisitado

 

Sou decididamente contra as vacas sagradas, mas compreendo a reação inicial de Daniel Hope, quando Max Richter falou-lhe do projeto de recriar as “Quatro Estações” de Vivaldi. "Há algum problema com o original?", perguntou-lhe, mas logo se dispôs a ser cúmplice nessa aventura, que transporta a obra setecentista para a sonoridade do século XXI.

O gesto de Richter não nasceu de irreverência gratuita, mas de uma perceção aguda: as “Quatro Estações” tinham-se tornado demasiado familiares, quase banais, dissolvidas no excesso de execuções, arranjos e usos triviais. O que outrora fora uma obra vibrante, feita de surpresas e contrastes, corria o risco de ser ouvida apenas como pano de fundo. Era, por assim dizer, uma peça célebre que todos conheciam mas já poucos escutavam.

Foi contra essa indiferença que Richter se levantou. Não quis “corrigir” Vivaldi, nem substituir a partitura, mas criar um espaço de escuta renovada. A estratégia foi radical: eliminar cerca de três quartos do material original e, com o que restava, reinventar a música segundo a sua própria gramática — feita de repetições hipnóticas, deslocamentos harmónicos e uma subtileza eletrónica que mergulha o ouvinte numa espécie de névoa temporal. O passado e o presente deixam de ser opostos; antes fundem-se num mesmo gesto.

A polémica foi inevitável. Para alguns, tocar em Vivaldi era um sacrilégio, como se certas obras estivessem fora do alcance da transformação. Mas, ao mesmo tempo, muitos reconheceram no projeto uma oportunidade rara: a de reencontrar a essência da obra através da mediação de outro criador. Richter não nega a tradição; dialoga com ela. E nesse diálogo, Daniel Hope desempenha um papel essencial, oferecendo ao violino uma voz que ora ecoa o virtuosismo barroco, ora se deixa enredar pela pulsação minimalista do século XXI.

O que se revelou, afinal, foi que a recriação não destrói o original, mas devolve-lhe vitalidade. Tal como acontece com os grandes mitos, que sobrevivem às inúmeras versões porque cada geração encontra neles algo novo, também as “Quatro Estações” renasceram em 2012 com esta metamorfose. O êxito da obra — traduzido em críticas entusiásticas, salas cheias e ouvintes de fora do circuito clássico — mostra que a reverência não é a única forma de respeito: reinventar pode ser uma forma de homenagem.

No fundo, Richter convida-nos a repensar a própria relação com os “clássicos”. O que é mais fiel à sua grandeza? Conservá-los intactos, como relíquias, ou deixá-los respirar, aceitando que cada época projeta sobre eles novas luzes? Talvez a resposta esteja no próprio efeito que a sua versão provocou: a de nos obrigar a escutar Vivaldi de novo, como se fosse pela primeira vez. 


quarta-feira, outubro 01, 2025

As Cidadãs esquecidas

 

Sabe-se bem quanto as revoluções costumam trucidar quem as levou por diante e acaba marginalizado, punido e até esquecido pelos manuais da História lavrada a mando dos vencedores. E isso é particularmente evidente com as mulheres durante a Revolução Francesa, às quais o documentário “Aux Armes Citoyennes!” de Mathieu Schwartz e Émilie Valentin procura devolver alguma justiça.

Quem foram essas mulheres que, por um momento protagonistas dos acontecimentos, precipitando-os, acelerando-os? Foram muitas, e de origens diversas: a vendedora Reine Audu, figura popular dos mercados parisienses; Olympe de Gouges, dramaturga e autora da “Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne”; Théroigne de Méricourt, amazona belga e oradora inflamável; Louise-Félicité de Keralio, jornalista republicana; Catherine Pochetat, soldada em campo de batalha; Pauline Léon, militante e fundadora de um clube feminino ao lado da atriz Claire Lacombe. Todas elas, com coragem e convicção, ocuparam o espaço público, político e simbólico de uma Revolução que prometia igualdade, mas rapidamente as silenciou.

O documentário, narrado por Romane Bohringer, entrelaça animação, arquivos e historiografia recente para reconstruir os seus percursos e devolver-lhes o lugar que lhes foi negado. Através de imagens de época, documentos oficiais e relatos esquecidos, somos levados dos salões aos campos de batalha, dos clubes às assembleias, numa cronologia que revela não só o entusiasmo revolucionário feminino, mas também a violência misógina que se abateu sobre elas. A partir de 1793, com o endurecimento do regime jacobino, as mulheres são expulsas da arena política, perseguidas, encarceradas ou difamadas. O golpe final viria com o Código Napoleónico de 1804, que consagraria juridicamente a subordinação civil das mulheres, abafando por mais de um século as vozes feministas que haviam emergido com força durante os anos revolucionários.

Mais do que uma reconstituição histórica, “Aux Armes Citoyennes!” é um gesto de reparação. Ao dar rosto, voz e movimento a essas figuras apagadas, o filme não apenas ilumina o passado, mas interroga o presente: que outras histórias permanecem ocultas? Que outras vozes ainda esperam ser ouvidas?

A Revolução Francesa, momento fundador da modernidade política, não foi apenas feita por homens. E talvez seja tempo de reescrever os seus capítulos com a tinta das que marcharam, escreveram, combateram e sonharam — antes de serem silenciadas. 

A pergunta de uma vida no palco da existência

 

Antes dos malefícios da doença a tornarem numa trágica aparência do que foi, teria sido enorme o prazer da Elza na experiência de ver a peça "Qui som?", apresentada no festival de Avignon do ano passado. Não só porque a cerâmica era parte integrante da performance do grupo de atores e atrizes, que dela faziam metáfora a propósito da fragilidade da vida e da capacidade de reconstrução, mas também porque, desde o título, estava presente a pergunta por ela sempre colocada ao longo da vida: quem somos? o que queremos? o que fazemos para o conseguir?

Essa interrogação, tão familiar à identidade da Elza, era o cerne da obra da companhia Baro d'evel: "Qui som?" não contentava-se em ser uma mera representação teatral; era uma experiência sensorial e existencial que desafiava o público a confrontar-se com as próprias incertezas. No palco, a cerâmica, mais do que um adereço, tornava-se a representação literal da fragilidade humana. Os vasos eram moldados e desfeitos, caindo em pedaços depois reunidos num ciclo de criação, destruição e, crucialmente, de reconstrução, ecoando a nossa própria jornada de altos e baixos, de perdas e de resiliência.

A peça, através de uma performance multidisciplinar que misturava circo, dança, música e teatro, evitava uma narrativa linear. Em vez disso, propunha um mosaico de momentos que, juntos, formavam um retrato do ser humano na sua complexidade. Havia humor e melancolia, caos e ordem. Os artistas, com a sua expressividade física e emocional, conduziam-nos por um caminho de introspeção, onde a comunicação transcendia as palavras e manifestava-se em gestos, acrobacias e no som da argila a ser trabalhada.

A pergunta "quem somos?" não era respondida de forma dogmática, mas explorada de uma forma que sugeria estar a resposta na própria busca. A peça convidava-nos a abraçar a nossa imperfeição, a aceitar os fragmentos de quem somos e a entender que a nossa identidade é uma obra em constante construção, tal como a cerâmica. O espetáculo era um hino à vitalidade e à curiosidade, uma chamada de atenção para o facto de que, mesmo quando sentimo-nos desfeitos, há sempre a possibilidade de reconstrução. E talvez seja essa a maior lição: a beleza não está na perfeição, mas na coragem de continuar a moldar a nossa própria história.