Há filmes que marcam pela beleza, outros pela grandiosidade, e depois há os que sugam para a realidade crua e deixam-nos a remoer, muito tempo depois de passar o genérico final. "O Ladrão de Bicicletas", de Vittorio De Sica, é um desses, e a capacidade de sugestionar permanece intacta, mesmo após tantos anos e múltiplas visualizações.
A pobreza dos protagonistas atrai sem ser romantizada, nem recorrer a um cenário pitoresco para uma história de superação. É a pobreza dura, esmagadora, que empurra para um beco sem saída. A história de Antonio Ricci, um homem desesperado por um emprego que exige uma bicicleta, é um murro no estômago. Aquela bicicleta não é um capricho, é a linha entre a subsistência e a fome, entre a dignidade e o desespero. Quando é roubada, sente-se o desespero dele, a vertigem de se ver sem nada, sem a ferramenta que lhe permitiria alimentar a família. O que faríamos nós numa situação dessas? Até onde iríamos?
De Sica tinha-se tornado famoso em comédias fúteis, quando se atirou de cabeça para este "O Ladrão de Bicicletas" que é um manifesto, uma peça fulcral na afirmação do neorrealismo italiano. De repente, o cinema não precisava de estúdios luxuosos nem de estrelas inalcançáveis. A vida real, nas ruas de uma Roma pós-guerra, era o palco, e os rostos anónimos da população, os atores.
Foi um movimento curto, é certo, uma lufada de ar fresco rapidamente sufocada. A promessa de uma esquerda socialmente mais justa, que poderia ter florescido naquele pós-guerra, foi atropelada pela coligação entre uma burguesia ávida, financiada pelos States, e uma Igreja Católica aterrorizada com a ideia de ver o "negócio" ruir perante um ateísmo mais do que racionalmente justificado naquelas circunstâncias.
E De Sica? Depois dessa fase de cinema politicamente empenhado e socialmente relevante, voltou ao que lhe garantia o sustento. Talvez por causa do vício do jogo, que o deixava amiúde em maus lençóis. Irónico, não é? Um homem que expôs tão brilhantemente a miséria humana nas telas, vivendo a própria batalha pessoal, de volta ao cinema "seguro", àquele que lhe enchia os bolsos para saciar os demónios.
Mas, apesar de tudo, o legado permanece. A bicicleta roubada, o desespero silencioso de pai e filho a vaguear pelas ruas, continuam a falar mais alto do que muitos discursos. E continuam a sugestionar, a lembrar que a dignidade humana é um fio tão frágil.
Sem comentários:
Enviar um comentário