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terça-feira, julho 29, 2025
“A Flauta Mágica” de Ingmar Bergman: um desconcerto inicial
Lembro ter sido há muitos anos, quando a Academia tinha uma enorme sala de cinema, razoavelmente preenchida no dia em que ali fomos ver o filme-ópera de Ingmar Bergman. Ele estreara-se, creio que no cinema Londres, quando andava nas voltas do mar, e a sala almadense significou a oportunidade de irmos em busca do "filme" perdido.
Logo ficámos desconcertados com o início, quando a banda sonora facultava a Abertura e a câmara fixava-se no rosto de uma miúda na puberdade, atenta ao que se passava no, para nós invisível, palco. Passados uns minutos, a câmara deixava-a (embora ainda a ela voltasse de vez em quando) para grandes planos com o rosto dos outros espectadores. Convenhamos que não esperava uma entrada assim, mas logo a mente se desafiou a lançar hipóteses para a opção de Bergman.
A estranheza inicial, esse inesperado mergulho nos rostos da audiência em vez de na própria cena operática, foi uma opção singular de Bergman, avesso a alternativa mais convencional. Num movimento que podia parecer excêntrico, subvertia as expectativas e, ao fazê-lo, conseguia democratizar a ópera e torná-la universal.
Ao fixar-se na expressão daquela miúda, Bergman estabelecia uma empatia imediata. Ela representava a inocência, a pureza da emoção, a capacidade de se maravilhar sem preconceitos ou a bagagem de um crítico experiente. Era um convite explícito a que cada espectador do cinema se sentisse como essa criança, abrindo-se à magia da música e da narrativa sem barreiras. O foco nos outros espectadores ampliava essa ideia, mostrando a universalidade da emoção humana face à arte. Víamos sorrisos, lágrimas, concentração – um leque de reações que humanizavam a experiência e nos faziam sentir parte daquela plateia, mesmo virtualmente.
Esta opção estética não era um capricho, antes uma declaração de princípios. Bergman, conhecido pelos dramas existenciais e frequentemente sombrios, embarcava numa ópera fantástica e otimista de Mozart. Ao mostrar a reação do público, quebrava a "quarta parede" e convidava-nos a partilhar a alegria e o encanto da obra, desmistificando a ópera como um género elitista.
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