sexta-feira, julho 25, 2025

A Baleia Branca

 

Foi num daqueles verões longos dos tempos do liceu, quando as férias estendiam-se numa promessa infinita de descobertas, que me deparei pela primeira vez com Moby Dick. Na feira do livro, entre clássicos que então me pareciam imposições curriculares, o volume grosso de Herman Melville exerceu em mim um magnetismo inexplicável. Talvez fosse a capa com a ilustração da baleia emergindo das águas escuras, ou talvez a própria espessura do livro, que sugeria uma aventura à altura das minhas expectativas estivais.

A verdade é que me deixei levar pela narrativa de Ismael desde as primeiras páginas. Havia algo de hipnótico na forma como ele levava-nos desde os cais sombrios de New Bedford até ao convés do Pequod, onde conhecemos a tripulação heteróclita e, sobretudo, o enigmático comandante Achab. Para o rapaz que eu era, sedento de aventuras e ainda alheio às subtilezas da alma humana, aquela história era pura adrenalina: a obsessão de um homem pela criatura que lhe arrancara uma perna, a perseguição implacável através dos oceanos, os perigos constantes da vida no mar.

Lembro-me de ler com o coração acelerado as descrições das caçadas às baleias, das tempestades que sacudiam o navio, dos momentos de tensão quando a tripulação avistava um jorro de água ao longe. A técnica de Melville para criar suspense tornava-o verosímil, e eu devorava capítulo após capítulo, completamente absorvido pela épica marítima. As longas descrições técnicas sobre a baleia e a indústria baleeira, fundamentais para a construção da obra, eram então apenas obstáculos que saltava, ansioso por chegar às cenas de ação.

O que me escapava completamente, naquele verão de inocência literária, eram as camadas mais profundas da narrativa. Não tinha ainda conhecimento de Freud — aliás, mal sabia quem era — e por isso as interpretações psicanalíticas da obsessão de Achab passavam-me totalmente ao lado. Via apenas um capitão determinado a vingar-se de um animal que o mutilara, sem perceber que ali se desenhava um dos mais complexos retratos da psique humana na literatura ocidental.

Herman Melville escreveu Moby Dick entre 1850 e 1851, num período particularmente conturbado da sua vida. Após o sucesso inicial com Typee e Omoo, narrativas de aventuras nos mares do Sul que o haviam tornado popular, o escritor americano ambicionava criar algo de maior envergadura artística. Influenciado pela leitura de Shakespeare e pela amizade recente com Nathaniel Hawthorne, Melville decidiu transformar o que seria inicialmente um simples relato de caça à baleia numa complexa alegoria sobre a condição humana.

A inspiração veio-lhe, em parte, da leitura de relatos verídicos sobre ataques de cachalotes a navios baleeiros, particularmente o caso do navio Essex, destruído por uma baleia em 1820. Mas Melville foi muito além do facto histórico, criando em Achab uma figura que transcende a mera sede de vingança para se tornar símbolo de algo muito mais profundo e perturbador.

Foi só anos mais tarde, quando regressei ao livro já com outra maturidade e ter lido Freud, que compreendi verdadeiramente a criação de Melville. A baleia branca deixou de ser apenas um animal gigantesco para se revelar a projeção dos medos, desejos e obsessões mais recônditos da mente humana. Achab, visto através das lentes da psicanálise, surge como um homem consumido não apenas pela sede de vingança, mas por uma pulsão destrutiva que o leva inevitavelmente ao encontro da própria morte.

A interpretação freudiana sugere que Moby Dick representa o inconsciente selvagem, aquela parte de nós que escapa ao controlo da razão e que pode, quando confrontada diretamente, destruir-nos. A perna perdida de Achab torna-se símbolo da castração, e a sua obsessão pela baleia uma tentativa desesperada de restaurar uma integridade perdida que, paradoxalmente, o conduz à aniquilação total.

Esta leitura não anula o fascínio pela aventura que senti na juventude, antes o enriquece. O talento de Melville reside precisamente na capacidade de criar uma obra que funciona em múltiplos níveis: é simultaneamente uma épica marítima emocionante e uma profunda sondagem dos abismos da psique humana. O rapaz que eu era pôde deliciar-se com a caça à baleia; o adulto em que me tornei pode apreciar a complexidade psicológica que sustenta toda a narrativa.

Talvez seja esta a marca dos verdadeiros clássicos: a capacidade de nos acompanhar ao longo da vida, revelando novas dimensões a cada releitura, crescendo connosco à medida que a compreensão do mundo se aprofunda. Moby Dick permanece, assim, como essa baleia branca que nunca deixamos de perseguir — ora como aventura, ora como mergulho nas profundezas insondáveis da alma humana. 

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