quarta-feira, julho 31, 2019

(DIM) A Casablanca de Michael Curtiz


Parafraseando livremente o escritor japonês Yukio Mishima, houve um tempo em que fui marinheiro nas graças do mar. Nesse distante passado eram frequentes as estadias em Casablanca nas viagens entre os portos do norte da Europa e a costa ocidental de África. Umas vezes só à ida, outras só à vinda, frequentemente nos dois sentidos. Tanto bastou para acompanhar a expansão da cidade nas últimas décadas do século passado.
Sobretudo nas primeiras abordagens - quando tudo era novo para os meus olhos de turista acidental! - não era difícil encontrar quem afiançasse ter sido ali rodado o famoso filme de Michael Curtiz, teimando que numa ou noutra esquina teria dado de caras com Humphrey Bogart ou Ingrid Bergman.
Sabe-se bem quanto gosta de acrescentar um ponto a quem um conto se dispõe a contar de modo que, às tantas, quase apostaríamos em como haviam passado a acreditar piamente no que começara por ser uma mera invenção. 
Obviamente que «Casablanca» foi rodado nos estúdios de Hollywood, porque seria inviável pensá-lo fazer numa geografia onde a guerra ainda tardava em definir-se no seu curso. Tratando-se de filme de propaganda o argumento até foi sendo criado à medida, que iam chegando notícias da evolução dos acontecimentos na Europa e no Norte de África. E, porque os produtores exigiam credibilidade ao que presumiam vir a constituir-se como uma excelente ferramenta de motivação dos norte-americanos para a guerra - Roosevelt só conseguira convencê-los a participar depois do ataque a Pearl Harbour -, os aderecistas cuidaram de conceber cenários muito parecidos com os reais.
Uma das leituras raramente formuladas a respeito do filme é a da consonância do personagem Rick com o dos norte-americanos: ambos manifestam-se determinados a manter a neutralidade entre os dois lados do conflito, mas acedem à causa aliada à medida que as emoções os empurram para o lado certo.
Se adotarmos essa grelha interpretativa o capitão Renault repete tal correspondência entre o individuo e o coletivo com que se identifica, mostrando-se suficientemente maleável para se dar bem com Deus e o Diabo à medida que a relação de forças se vai alterando. A História ensina-nos que, pese embora o heroísmo da sua Resistência, a maioria da população francesa pactuou, sem grandes estados de alma, com os ocupantes nazis.
Resta Ilse e Victor Laszlo? A mantermos a mesma lógica, podemos reconhecer nela um continente dividido entre difíceis contradições e nele um  quadro de valores éticos, que as circunstâncias demonstraram ser demasiado frágeis para sobreviverem no pós-guerra. A exemplo do que ocorrera no final da Primeira Guerra, quando quatro impérios receberam a certidão de óbito, a paz conseguida após a queda de Berlim transfiguraria a Europa de tal forma que, quase em nada, se assemelharia à que se iludira com os ritmos trepidantes da Belle Époque e se angustiara com os dramáticos efeitos da Grande Depressão deste lado do Atlântico.
Nunca saberemos se o húngaro Michael Curtiz pressentiu tal transformação, quando a representou no filme que Mário Soares considerava como o da sua vida.

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