domingo, outubro 25, 2015

PALCOS: Até onde iremos abster-nos?

Quem ainda não viu um dos mais impressivos espetáculos teatrais atualmente em cena nos palcos da Grande Lisboa tem mais uma semana para o fazer já que o sucesso de «Abstenção», que O Bando leva à cena nas suas instalações do Vale dos Barris em Palmela, justificou o seu prolongamento por mais uma semana. E se a peça não suscita o entusiasmo, que o grupo nos criou com «Quarentena» no ano passado e com «Ensaio Sobre a Cegueira» em 2004, não deixa de questionar muito oportunamente a nossa realidade.
À partida existia o texto «Cruzeiro» de Abel Neves sobre uma família a viver numa mansão arruinada no campo e em que o pai exercia um poder autoritário sobre a mulher e os filhos, que silenciavam ou não resistiam às suas humilhações. A partir dele João Brites e Miguel Jesus trataram de lhe dar forma dramatúrgica e remetê-lo para o que nos sugerem as diversas formas de abstenção: porque não corremos nas urnas eleitorais com quem nos tem maltratado no governo? Porque calamos a nossa revolta? Porque não resistimos?
Se esse trabalho preparatório da peça foi feito ainda antes das eleições de 4 de outubro, o seu desiderato pôde ser visto a partir do dia 8, quando já se colocavam as novas possibilidades abertas pela previsível concertação das diversas forças de esquerda.
Mas o cerne da questão continua em aberto, porque devemos compreender o que leva alguns - como a mulher do lavrador - a preferir o silêncio como forma de contestação, por muito que ele a nada conduza. E, quando se coloca a possibilidade de ver os filhos prepararem-se para contestar esse poder totalitário, até é capaz de sair do seu mutismo para lhes lembrar que não podem fazer isso por se tratar do seu pai.
E, no entanto, esse poder - que é o dos governos capitalistas, que nos oprimem - já está quase cego e  depauperado por um acidente: o trator que conduzia tombara e atropelara-o, o que condiz com a forma como a História está a cuidar de demonstrar a degenerescência progressiva deste tipo de sistema.
Mas que dizer desses filhos, que detestam o pai, mas continuam a cumprir com o que ele lhes ordena? O mais novo vai afiando uma faca - que poderia servir para degolar o ditador - mas  vai devolvendo-a a ele para inspecionar se já estará tão aguçada como a sua gadanha. E o mais velho até está disposto a casar com a rapariga da aldeia a quem o pai engravidara, só para que se salvem as aparências.
Há, pois, a tensão de muita revolta contida, mas quando ela explode é para vitimar quem  seria inocente em tudo quanto se passara: a criança no ventre de Rosa.
Acabamos, assim, com o ditador cada vez mais agrilhoado na sua fortaleza, mas ao mesmo tempo protegido de quem a queira assaltar. Exceto da Morte, que virá, no final, ao seu encontro.
Mas fica a questão: estaremos dispostos a deixar que este sistema de exploração morra de morte natural, abstendo-nos de lhe acelerar o fim?


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