quarta-feira, agosto 19, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: A perspetiva psicanalítica de «Na minha morte» de William Faulkner

Addie morre quando está a chover, e todas as pontes sobre o rio são levadas antes que o cadáver possa passar para a outra margem.
Em passagens, que já anunciam algumas das melhores páginas de «Palmeiras Bravas», Faulkner descreve essa travessia  fazendo convergir o grotesco com o épico, o burlesco com o trágico. São vários os personagens, que descrevem tal prova nessa parte culminante do romance.
Na luta contra os elementos - a chuva mistura a água e a terra numa espécie de lamaçal que evoca o caos original - a célula familiar depressa se converte no símbolo de toda a humanidade , tanto mais que motivada por um rito secular em que ela enfrenta obstáculos primitivos e é traduzida numa viagem ilustrativa da nossa irreversível caminhada para a morte.
Os psicanalistas leram com entusiasmo essa parte em que há a passagem do rio e a ponte assume um papel simbólico. Ela representaria o membro viril do pai e a mãe seria duplamente representada na paisagem a alcançar e na água a atravessar.
Essa interpretação torna-se tanto mais pertinente quanto o autor numa breve evocação da história da ponte arrastada pela corrente do rio, corrobora essa tese fazendo da construção uma referência à virilidade e à consequente fertilização do ventre feminino.
A outra margem é onde Addie Bundren, a mãe totémica deve ser enterrada, mas também onde se tem de chegar, custe o que custar, para sobreviver.
É o que nunca Anse, o viúvo de Addie, deixa de afirmar, considerando que só depois de cumprida a tarefa por ela exigida, é que tudo poderia recomeçar...

Extrato:
O rio propriamente dito não chega a ter cinquenta metros de largura, e o pai, o Vernon, o Vardaman e a Dewey Dell são as únicas coisas visíveis que não partilham daquela una e monótona desolação que se inclina ligeiramente, em toda a sua terrível natureza, da direita para a esquerda, como se tivéssemos chegado ao local onde o movimento do mundo devastado acelera antes do precipício final. No entanto, parecem minúsculos. É como se o espaço que nos separa fosse tempo: uma qualidade irrevogável. É como se o tempo, deixando de passar diante de nós numa linha cada vez mais curta, corresse agora paralelo entre nós como uma laçada de corda, sendo a distância o dobro da corda e não o intervalo. As mulas estão paradas, já com os quartos dianteiros um pouco inclinados e os flancos elevados. Também elas respiram agora com o som cavo dos gemidos; olham para trás uma vez e o seu olhar varre o horizonte com olhos desvairados, tristes, profundos e desesperados, como se já tivessem visto na água espessa a sombra do desastre que elas não podiam dizer e nós não podíamos ver.


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