sexta-feira, agosto 14, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: Os Bundren em luta com a água e com o fogo

Em texto anterior vimos como «Na Minha Morte» veio a tornar-se num dos mais importantes romances de William Faulkner, abordando a viagem de uma família camponesa com o cadáver da mãe, Addie, que pretendia ver-se sepultada na terra onde nascera.
Os Bundren vão enfrentar dois desafios no percurso para Jefferson: a água e o fogo, de que Addie tivera o pressentimento em como Jewel a salvaria. Ou melhor, ao seu caixão! Porque essa não é  a menor particularidade provocadora do romance, narrado em cinquenta e nove monólogos separados, cada um intitulado com o nome de um personagem.
O de Addie acontece bem depois da sua morte, no centro do livro, como se se tratasse do centro da roda da carroça que a transporta, e os filhos servissem de raios.
Esta disposição encontra justificação no facto de um dos temas do livro ser a solidão de cada um face àquilo que vivencia. De facto, cada membro da família  tem uma razão secreta, e fútil, para chegar a Jefferson: o pai para adquirir uma cremalheira, a filha para abortar, o mais novo para comer bananas.
Dessa forma todas as conversas, episódios e descrições são assinaladas - pré-selecionadas e deformadas - por um personagem e aquela que terá maior predominância será Darl, o vidente semilouco, que causará o incêndio da granja onde a família para, após a fatigante travessia do rio, e por isso se vê enviado para o manicómio. Faulkner dá-lhe uma visão e um linguajar poético, onde abundam os «como se…» tão do agrado dos simbolistas anglo-saxónicos (em contraponto com a fala das almas simples, Dewey Dell e Vardaman, caracterizada pela substituição do «porque» pelo «que»).

Extrato:
Pouco antes da madrugada a chuva pára. Mas ainda não é dia quando o Cash crava o último prego, se põe muito direito a olhar para o caixão já pronto e os outros a olhar para ele. À luz da lanterna o seu rosto está calmo, pensativo; limpa as mãos devagar às coxas cobertas com o impermeável num gesto deliberado, terminal e contido.
Depois, os quatro - o Cash, o pai, o Vernon e o Peabody - põem o caixão aos ombros e viram em direcção à casa. Está leve, mas avançam devagar; vazio, mas carregam-no com cuidado; sem vida, mas vão troeando entre eles palavras sussurradas, precavidas, falando dele como se, uma vez pronto, dormitasse agora em suspensa animação, aguardando o momento de acordar. Os pés batem no chão escuro, pesados, desen­contrados, como se há muito não pisassem o soalho.

Sem comentários: