sexta-feira, fevereiro 27, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «Anais de Pena Ventosa» de Pedro Eiras (VII)

Os textos anteriores dedicados ao romance de estreia de Pedro Eiras permitiram-nos considera-lo como dedicado ao percurso iniciático do protagonista, Bonifácio, desde a ignorância até ao conhecimento.
Se ele começara por aceitar sem rebuço os dogmas da fé, as circunstâncias irão paulatinamente empurra-lo para a sua relativização e para uma mundividência bem mais colorida do que o seu anterior filtro maniqueísta.
Por exemplo, em relação aos mistérios do amor: ao avançar um dia pela floresta vai até perto de um riacho, onde surpreende Silvestre e Briolanja a tomarem banho nus. Ao contrário do que ajuizariam os monges de Pena Ventosa, com exceção do admirado Dom Hilário, Bonifácio não vê naquela cena qualquer motivo de censura:
“Não havia pecado pois Deus não veria pecado naquela séria brincadeira, eterno acompanhamento, determinação assumida em que era possível despirem-se e não sentirem vergonha nem remorso ou culpa. E ali, o espírito de Deus vogava sobre águas; entre eles e o Senhor não era atrito, tudo, sem palavras, sem pensamento, era aceite. Porque nas mesmas circunstâncias Adão e Eva tinham sentido vergonha e escondido de sexos, enquanto o Silvestre e a Briolanja os ostentavam sem horror ou arrependimento, soube que não existia condenação. Nem deus sentiam, de quem se escondessem, e enchiam, sozinhos, a solidão da Terra.” (pág. 243)
A inocência de Bonifácio vai enfrentando sucessivos desafios: joga xadrez com o alquimista e sente-se tentado pelo seu pensamento tão distante do que o mosteiro lhe tenta inculcar: “O Herbanário é um homem feliz e completo. Deveras não sente falta de Deus nem da promessa de Vida Eterna, antes gosta muito da sua vida entre os homens; não é espírito atormentado, nem sangra da Alma” (pág. 278).
Por essa altura também fica a saber por Ranulfo, o pai de Silvestre envolvido na construção da nova Catedral, que existe no seu subsolo um túnel singularmente frequentado por Dom Hugo, quando se julga a coberto de olhares alheios.
Quando entra no ano de 1118 perturba-o, amiúde, a ideia da morte: “ao longo dos dias, penso muito sobre a morte. Todos os anos, mil razões dizimam velhos e novos em Portucale: chegado o inverno, as chuvas alimentam tumores malignos que corrompem o fogo da vida; no dealbar da primavera, morrem crianças por comerem fruta verde. Ferimentos e chagas não curam, alastram pela pele em crostas escarlates e negras, até que o corpo se rende e desfaz. Quedas, venenos, doenças, fomes - quantos perigos cercam o homem desprotegido”. (pág. 265)
Bonifácio não imagina que se abeirará o tempo de uma decisão definitiva para o seu futuro!

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