sábado, fevereiro 14, 2015

DIÁRIO DE LEITURAS: «Anais de Pena Ventosa» de Pedro Eiras (III)

Nos textos anteriores víramos que o romance de Pedro Eiras, publicado em 2001, tinha por narrador o noviço  de um mosteiro de Portucale - Bonifácio - que, no ano de 1113, dispõe-se a descrever  quanto vai vivendo e pensando.
Por ele iremos conhecer um território dominado pela Igreja e onde o poder político ainda não se implantou. Daí que se vislumbrem duas classes bem definidas: o clero, representado pelo bispo e seus clérigos, e o povo sujeito a uma atroz pobreza.
O melhor amigo do protagonista é um jovem sapateiro da sua idade, Silvestre, com quem vai partilhando os tempos livres: “Ele era para além do meu mundo e meus interesses; assim eu pensava, e no entanto fascinou-me. Lembro-me bem do quanto me admiravam a sua força, a perícia de quem caminha montes e florestas - e eu era quase invejoso dessa audácia e ansiava conhecê-lo.” (pág. 59)
Poderia pressupor-se uma atração, que fizesse resvalar o noviço para o “pecado”, mas Eiras não se aventura por essa possibilidade: “O Silvestre acompanha-me, fala comigo, ou nem sequer fala - mas está perto. Às vezes diz algo de que ambos rimos, ou digo eu. E ajudo-o a trabalhar se ninguém vê, onde não seja escândalo um noviço pegar em terra e lama, sujando até ao dentro das unhas.” (pág. 61)
Não é que o arcediago  Dom Gonçalo não o alerte para os perigos aventados por São Jerónimo e que se resumem aos riscos da penetração carnal: “os sentidos são como janelas por onde os vícios entram na alma. A metrópole e a cidadela de espírito não podem ser tomadas enquanto o exército inimigo não passar pelas portas” (pág. 68)
O fascínio de Bonifácio por Silvestre e pela respetiva família tem a ver, sobretudo, com a enorme diferença entre eles e os que vivem nos claustros: “eu estava a pensar que no mosteiro só há silêncio àquela hora, e uma voz que lê uma passagem da Bíblia, meditando: depois silêncio definitivo mal terminamos a ceia e recolhemos; e por fim a conveniência indiscutível de não falar até voltar o dia e nos reunirmos para cantar matinas; porém ali [ao jantar com Silvestre e os familiares mais próximos] era o fermentar da palavra - que se interrompia, do pródigo desgaste da fala, do pertencer aos outros pela fala” (pág. 72).
As tentações dos sentidos acometem Bonifácio, quando conhece a namorada do amigo, acabada de chegar a Portucale, vinda das terras do sul ainda há pouco em mãos mouras: “Desde que chegou Briolanja a Portucale ele  [Silvestre] é diferente - como se houvesse visto diabo mas luxúria selasse seus lábios. Vinha febril e como tomado de maleita, mas maleita distinta das que conheço, que jamais vi alguém daquela forma padecer.” (pág. 86)
Já estamos, então, em 1114 e não tardaremos a surpreender em Bonifácio uma inefável vocação de voyeur.

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