sábado, junho 28, 2008

LUA NAVEGANTE - PASSEIO DO SAL (2)

Cai a noite sobre a falésia e o grupo inicia o movimento. O plano é descer por um trilho há muito percorrido por quem ali procurou modo de vida e afastarmo-nos completamente dos sinais da civilização para usufruirmos da sensação única de nos encontrarmos com o nascimento da Lua em noite de solstício.
O farol depressa se oculta por trás das colinas e apenas as luzes de pescadores se agitam no negrume do mar.
À frente das lanternas agitam-se as esferas do minúsculo pólen, que as câmaras fotográficas e as lanternas denunciam.
Pessoas que não se conhecem falam com a naturalidade dos que há muito se encontram. Empatia imediata de quem partilha a novidade da experiência. Que é a de quase se dispensar um dos nossos mais valorizados sentidos: a visão.
A quatro ou cinco metros de distância nada se vislumbra. Se calhar ainda bem: soubéssemos o que nos circunda e seríamos, porventura, tomados de receios, que acabam por se revelar infundados na inocência do nosso desconhecimento.
De quando em quando arrisco uma espreitadela para trás: continuando na cabeça do grupo o que nos segue é uma sucessão de pirilampos a avançar lentamente na nossa direcção.
Outros nos imitam e por isso, de vez em quando, paramos: é a oportunidade de melhor apreciarmos a vegetação silvestre, que nos pica as pernas ou nos obriga a afastar com as mãos, hélas, desprotegidas.
Cedo somos forçados a concluir que por bem equipados, que nos sintamos, faltou-nos essas luvas de protecção. Até porque, lá mais adiante, quando já ultrapassámos o momento mágico do surgimento da Lua, somos obrigados a subir uma rampa muito inclinada e a posição de gatas quase se torna obrigatória.
A escuridão envolvente cria também outra ilusão: a de mergulharmos numa letargia entre sonho e realidade. Como se estivéssemos no conforto dos nossos lençóis e o onírico fosse feito da substância daqueles cheiros, daqueles sons e daqueles tacteares incertos.
O frio, que chegara a intimidar lá em cima, junto ao farol, já está esquecido. A caminhada aqueceu os corpos e começa-os a fazer suar. Passada a ventania do pôr-do-sol é a calidez da noite o que se cola às nossas peles.
E aproximamo-nos da plataforma aonde nos iremos sentar para a merenda, enquanto a Lua não chega. Há um forte ruído das vozes a sobrepor-se à vontade de ali nos abandonarmos ao silêncio no meio da escuridão.
Será que o grupo impedirá o desejo da iminente magia?



***



É pedido silêncio e uma voz sobrepõe-se a todos os sons remanescentes da noite. Soam palavras de Fernando Pessoa, de Branquinho da Fonseca e de Sophia de Mello Breyner.
São onze e quinze. Faltam quatro minutos para o anunciado nascimento da Lua.
O grupo de seis dezenas de almas em êxtase abandona-se à escuridão reinante. Não há luz alguma a não ser a das milhentas estrelas, que povoam os céus.
E, de repente, ao minuto anunciado, começa a surgir um ligeiro risco alaranjado no limite do horizonte.
Mera sugestão ou realidade?
A resposta não tarda: esse risco converte-se numa pequena mancha, que parece saltitar por cima das águas paradas.
E a magia permanece: ninguém emite uma palavra, as respirações parecem conter-se na atenção exclusiva a esse combate entre o negrume absoluto e a mancha de luz, que vai ganhando forma até se converter numa bola ainda esmaecida na palidez do seu tom de alvorada.
É quando a cor se aclara que o silêncio se rompe, e as luzes se acendem nas cabeças devolvidas ao movimento.
Felizmente o luar ainda não está a prevalecer sobre toda a penumbra envolvente. Porque o terreno inclina-se junto à falésia no fundo da qual se ouve o ribombar das ondas. Fosse dia e a sugestão do perigo tolheria a vontade de seguir os que caminham à frente. Assim, recorrendo às mãos e aos pés em posição quase quadrúpede, vence-se o obstáculo e chega-se ao forte arruinado, donde os homens setecentistas espreitavam as movimentações das escunas dos corsários.
João, o guia, evoca o que seria viver nesse tempo, ali no meio de nenhures, quase sem mantimentos e tendo para beber a água da chuva recolhida no poço imundo.
A Lua já está branca a resplandecer no horizonte. Toda a superfície líquida, lá em baixo, espelha a vastidão de águas, que medeia entre a península de Tróia e as profundezas atlânticas a norte do Cabo da Roca.
O percurso torna-se bem mais fácil. A inclinação diminui, o trilho alarga-se entre a vegetação rasteira.
O grupo faz-se mais ruidoso.
Vencida a magia é tempo de regressar. Tanto mais que está prometido um moscatel na concentração final.
Já mudámos de dia e os corpos estão suados, extenuados do esforço de três horas de inauditas vivências.
A civilização titubeia nas moradias abortadas muito antes de se tornarem habitáveis, por que passamos. A luz do farol, à distância de um par de quilómetros já anuncia a chegada.
É a realidade a sobrepor-se à sensação de ter mergulhado em sonho profundo. Cresce a sensação de se retomar nela o concerto de rotinas de que são feitos os dias de trabalho da semana que se segue...

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