quarta-feira, março 24, 2021

(DIM) Tommaso, Abel Ferrara, 2019

 

A meio do filme Tommaso está a intervir numa sessão de terapia de grupo, quando conta a preocupação em não repetir com DeeDee, os erros cometidos no passado, quando estava viciado nas drogas e no álcool e tinha duas filhas adotivas. Um dia, quando decidiu abandonar o lar, separando-se da mulher, uma dessas miúdas, então com 4 anos, perguntou-lhe se o fazia por ela fazer demasiado barulho. Ora, ele reconhecia ser ela uma miúda amorosa e sossegada, que não justificava em nada esse receio. E, no entanto, esse trauma tê-la-á marcado de tal maneira que, anos depois, se afundaria numa tragédia pessoal, por ele contabilizada no cômputo das culpas passadas.

Esse momento define um filme, que não sabemos até que ponto corresponde a uma autobiografia do próprio Abel Ferrara, mas que justifica tal hipótese não só por ter Cristina e Anna a fazerem respetivamente de mulher e filha desse Tommaso interpretado por Willem Dafoe, há muito convidado para lhe servir de alter ego. E, porque sendo sempre o casal aquele espaço onde aos outros se começa a fazer mal, também se pode entender como legítima essa sensação de masculinidade aflita num homem com mais do dobro da idade da conjugue e dela tendo uma filha tão pequena.

Naquele que muitos consideraram o Roma de Ferrara acompanhamos seis dias da vida de um realizador num impasse criativo embora seja fácil identificar o projeto em que trabalha no Sibéria, que viria a estrear a seguir. Como diria numa entrevista, quando apresentou este seu filme no LEFFEST, para o personagem o mundo parece estar a explodir a qualquer momento e procura romper o círculo da solidão. Ora, para Ferrara, agora as pessoas estão sozinhas em casa a ver as coisas em computador, o que é terrível, o isolamento do indivíduo.

E, no entanto, não falta convívio social a Tommaso, que dá aulas de representação e de técnicas de respiração, aprende italiano com uma professora só dele, pratica ioga e assiste às sessões de uma associação de antigos adictos a diversas drogas. Mas a abstinência sexual imposta por Nikki a quem só lhe parece interessar a filha, sujeita-o a alucinações paranoicas de cunho sexual. Consolida-se-lhe a sensação de ter sido expulso do seu mundo por uma criança, que sente o dever de amar. Não admira que lhe adivinhemos a condição de uma bomba-relógio à beira de explodir, porque o passado obscuro não está afinal tão bem resolvido, quanto ele gostaria.

Por essa altura da descoberta do filme, temos de reconhecer-lhe a honestidade e a coragem por sugerir-nos ser um jogo de espelhos de Ferrara com a sua realidade. E só nos desvinculamos dessa hipótese, quando sabemos o método criativo por ele escolhido para concretizar este projeto: um work in progress  a meias com Dafoe, que é mais do que o ator principal para se assumir de facto como seu coautor.  E se o desiderato não podia ficar mais em aberto não deixa de ser elucidativa a opção para a cena, que antecede o genérico final: a miúda de três ou quatro anos entretida a olhar para o telemóvel...

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