sábado, março 06, 2021

(DIM) O Rio Sagrado, Jean Renoir, 1951 

 

Na filmografia de Jean Renoir O Rio aparece três anos depois de A Mulher Desejada, que fora um tal fracasso comercial, que a relação dele com os estúdios de Hollywood ficou-se por aí.

Num impasse quanto ao que faria a seguir, Renoir deu com um artigo do New Yorker sobre um romance de Rumer Godden sobre a experiência de uma família inglesa instalada na Índia e não tardou a concluir ser esse o seu novo projeto criativo.

Com uma personagem por ele acrescentada à do romance original tinha a história focalizada em Harriet, uma rapariga com três irmãs e um irmão, com outro ainda a caminho, que vivia na região de Calcutá com a família. Quando ganha por vizinho o Captain John, que vem recuperar de ferimentos contraídos na guerra, ela irá rivalizar com a bela mestiça Melanie e a amiga Valerie qual delas conseguirão dobrar o recém-chegado aos seus encantos.

Para redigirem o argumento, Renoir e Rumer Godden instalaram-se nas margens do Ganges ao mesmo tempo que começaram a definir o elenco mediante o recurso a atores e atrizes amadores. Assim  se viu Patricia Walters escolhida para o papel de Harriet e Radha, uma intelectual e bailarina indiana, com o de Melanie.

Para equilibrar as competências foi buscar veteranos bem conhecidos de outros filmes. Arthur Shields, o pai de Melanie, vinha do universo fordiano, enquanto Esmond Knight, o de Harriet, rodara com Michael Powell e Emeric Pressburger.

A ambição maior seria a de quem interpretaria o papel de Captain John, mas quer Marlon Brando, quer James Mason declinaram o convite, acabando assim o desconhecido Thomas E. Breen com essa responsabilidade.

A rodagem iniciou-se em janeiro de 1950 e prolongou-se por quatro meses, sempre nas imediações de Calcutá. Quando se estreou mundialmente, por alturas do natal desse mesmo ano, o sucesso foi enorme, complementado com o prémio da crítica do festival de Veneza.

Transformado num clássico, que todo o cinéfilo digno desse nome está obrigado a conhecer, também foi logo tido como filme vanguardista graças ao carácter inovador das técnicas utilizadas, à estrutura narrativa e à forma como revelou uma cultura quase até então ignorada pelo público ocidental. O que não impediu Renoir de assinar obra profundamente fiel aos seus valores e temas.

Com O Rio Renoir abandona o preto-e-branco e, profundo conhecedor da obra do progenitor - o pintor impressionista Pierre-Auguste Renoir - replica-lhe o talento na mistura das diversas cores. Graças a Claude Renoir, seu sobrinho, vai dar uma fascinante versão ao Technicolor então na moda, contornando a dificuldade de não haver estúdio indiano onde ele pudesse ser revelado. Em alternativa, Renoir rodou as cenas a preto-e-branco - operando-se a transformação para cores no estúdio londrino para onde iam sendo enviadas as bobinas das cenas entretanto rodadas.

Não conhecêssemos essa peculiaridade e não nos admiraríamos tanto com o facto das cores indianas explodirem tão notavelmente no ecrã, numa harmonia próxima da perfeição. Sobretudo na componente documental do filme, quando as imagens de Jean mais se aproximam das de Pierre-Auguste, como é o caso das colhidas durante a festa de Diwali, na fábrica de juta ou, sobretudo, nas escadarias de acesso ao rio.

Ciente disso, Renoir alertara para a intenção de contar a história como se ela acompanhasse uma apresentação de sucessivos quadros.

Inovação, igualmente, na banda sonora, com Renoir a prescindir da criação de uma banda original, antes lhe preferindo a interpretação de muitos temas tradicionais a alternarem com música clássica ocidental (Schumann, Mozart).

Na maravilhosa viagem em que Harriet serve-nos de guia podemos interpretar os ferimentos do Captain John como uma alusão aos que o próprio Renoir sofreu durante a Primeira Guerra Mundial e lhe daria definitiva forma singular de se movimentar.

A importância dos personagens infantis, entusiasmados nas suas brincadeiras, remete o realizador para a sua infância, evocada como imensamente feliz. E o personagem interpretado por Arthur Shields constitui singela homenagem ao próprio pai.

O título do filme também nos sugere a ligação quase contínua de Renoir com o tema da água, que sempre se fez presente desde a rodagem de La fille de l’eau (1924) até ao Déjeuner sur l’herbe (1959), sem esquecer os deliciosos Une Partie de Campagne (1936) ou Boudu sauvé des eaux (1932).

É a água, que percorre o leito do rio e metaforiza a vida, o tempo a passar sem que o possamos travar. O Ganges traz o Captain John à vida de Harriet e alimentará a tragédia que se seguirá.

Surpreendente a forma como Renoir insufla uma atmosfera indiana no filme sem quase fazer a ação sair de dentro dos muros da casa onde Harriet vive. Se aí existe uma espécie de Éden, a cultura circundante irrompe das mais diversas formas, incluindo as das danças tradicionais.

A festa de Diwali, dedicada à deusa Kali, representação dialética da criação e da destruição, é a oportunidade para a câmara sugerir no plano de Bogey - o irmão mais novo da protagonista - a perspetiva hinduísta de uma morte trágica, logo compensada pelo nascimento da criança prestes a nascer. Tal como a rivalidade amorosa entre as três raparigas não exclui a cumplicidade dos risos e dos perdões.

O Rio acaba por ser uma declaração de amor, que Renoir faz à Índia, num filme que é coerente com todo o seu percurso criativo anterior.

E se não foi o primeiro a fazer do Ganges o cenário para a exploração do seu talento artístico, Renoir conseguiu dar dele uma visão original e irrepreensivelmente bela.

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