Já existe um livro emblemático sobre o que é viver num asilo de velhos, graças ao romance mais recente de valter hugo mãe. «A Máquina de Fazer Espanhóis» constitui, de facto, um testemunho eloquente sobre a vivência de um viúvo com oitenta e quatro anos, desde o seu internamento nesse tipo de instituição até à sua morte.
António Silva, assim se chama ele, sempre primou por passar a vida na maior das simplicidades. Bastava-lhe o amor de Laura, cuja morte numa noite de grande tempestade, é por ele sentida como uma tremenda injustiça. Ademais, e porque não acredita em transcendências, ele nem sequer encontra a quem culpar por essa solidão a que se vê condenado.
Poderia olhar para o passado e encontrar alguma paga dos seus actos. E se ele cometera inconfessável ignomínia ao denunciar à pide um jovem opositor do regime, a quem escondera em dia de inaudita audácia e que se tornara nos nove anos seguintes um cliente fiel da sua barbearia.
Mas, mesmo condenando-o a uma provável morte, António Silva não se sente comprometido com esse acontecimento: é que entre o conforto singelo de Laura e os riscos inerentes ao da militância do seu cliente, ele nem sequer hesita.
As primeiras semanas de António no Feliz Idade são de silenciosa revolta, recusando-se ao contacto com quem quer que seja. Mas depressa começa a congregar um grupo de amigos com quem alimenta crescente empatia, embora não aceite para aquele convívio a designação de amizade. O que mais disso se aproxima é Pereira que, de alguma forma, o apresenta aos outros. Nomeadamente ao velho Esteves, que não é mais do que o célebre personagem do poema de Fernando Pessoa sobre a Tabacaria. Há também o outro Silva, o da Europa, cerca de vinte anos mais novo e seu conhecido da noite no hospital em que Laura lhe morrera. Ou Anísio, o antigo responsável do Museu das janelas verdes e que não tardará a arranjar namoro com outra das residentes.
Mas há também os seus ódios de estimação: a dona Marta, a quem ele escreverá cartas de amor, como se fossem emitidas pelo marido dela, um homem mais novo, que lhe ficara com a fortuna antes de para ali a abandonar. Ou uma fanática admiradora do F.C. Porto desde o dia em que passara uma tarde já distante em fogosos enlaces com o seu jogador Cubillas.
António revolta—se com a sua família remanescente: à filha, Elisa, acusa de o ter retirado de sua casa para o pôr ali. Ao filho, radicado na Grécia, imputa o total alheamento em relação à morte da mãe, a cujo funeral nem sequer comparecera.
Redigido com grande qualidade e no estilo que o tem caracterizado nas suas obras exteriores, «A Máquina de Fazer Espanhóis» mostra como se torna paranóico o modelo de pensamento das pessoas encerradas em ambientes concentracionários como o são os aqui tratados. E nesse delírio contínuo em que se sucedem os capítulos, deixamos de saber com rigor o que acaba por ser verdade ou o que é fruto da imaginação do seu narrador.
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