sábado, fevereiro 16, 2008

A minha pateada em Newport

Se de repente me visse a viajar no tempo, aterrando no Festival de Newport em 25 de Julho de 1965, qual seria a minha atitude perante a actuação de Bob Dylan?
Estaria entre os que o apupavam ruidosamente ou entre os que o apoiavam na decisão de abandonar um som canonicamente folk para abraçar as sonoridades eléctricas do rythm & blues e do rock?
Sabendo o que sei hoje penderia decerto para a primeira hipótese porque, se num Pete Seeger respeito a firmeza das convicções, Dylan aparece-me como um egocêntrico, que namorou com as grandes causas de então (Direitos Cívicos, Guerra do Vietname), ganhando notoriedade à esquerda e, depois, se dissociou completamente desse filme.
Poder-se-á reconhecer nele uma personalidade complexa, mas nesta biografia definitiva assinada por Martin Scorcese, o que sobressai é um confessado individualismo, alheio a valores, a emoções e a lealdades.
Terá sido um enorme talento na forma de recolher as palavras do seu âmago e transformá-las em poemas com assombrosa rapidez.
Reconhecer-se-lhe-á versos, que mesmo atendo-nos à sua aversão a constituir-se como porta-voz de uma geração revoltada, se tornaram bandeira de ideais muito mais avançados do que os por ele pretendidos. Mas como não escalpelizar os múltiplos sentidos de uma canção anunciadora dos tempos em mudança?
Ele terá cruzado, igualmente, a sua arte com a do seu tempo, convivendo com Andy Warhol, com Allen Ginsberg e tantos outros artistas, que nele chegaram a vislumbrar o mensageiro de uma época muito diferente, porque em radical corte com os valores enquistados de então…
Apesar do aprofundado trabalho do realizador, fica por esclarecer o mistério Dylan. Quem terá sido ele no meio de tantas e tão contraditórias imagens de si? Que elementos de personalidade serão comuns às suas sucessivas reinvenções de si próprio?
O documentário de Scorcese vale, sobretudo, como espelho de uma época conturbada em que se chegou a pensar exequível uma outra sociedade, liberta dos egoísmos do capitalismo.
O afastamento de Dylan desse tipo de utopia acaba por ser o melhor retrato desse idealismo frustrado. Porque nenhum sonho se aguenta de pé, quando os seus supostos guias espirituais se apressam a abandonar o barco…
Se na canção de Mercedes Sosa haverá que distinguir entre os bons, os muito bons e os imprescindíveis, Dylan incluir-se-á porventura na categoria dos primeiros…

Sem comentários: