terça-feira, setembro 02, 2025

"Na Lista Negra" de Irwin Winkler (1991): o cinema como memória viva

 

Numa altura em que o outro lado do Atlântico parece tomado da histeria protofascista, que justifica despedimentos em massa com base no suposto peso negativo do Estado na vida comum dos norte-americanos  - que, sem muitas das instituições federais, teriam prometida uma estrada de lajes amarelas em direção ao palácio onde oficia o feiticeiro Trump! - rever o filme de Irwin Winkler suscita duas reações complementares: por um lado a indignação contra a perversidade do poder absoluto mantém-se incólume; por outro que não há poder incontestado, que sempre dure. Nem mesmo o nazismo o conseguiu quando proclamou-se decidido a perdurar por mil anos e esboroou-se ao fim de doze.

O problema são as vidas inocentes trucidadas pelas politicas que, momentaneamente, não têm oposição que baste. Porque os que não se vergam são poucos e aqueles em quem poderiam ter apoio determinante, cedem à cobardia, ou à sua faceta vestida de indiferença.

É neste contexto que “Na Lista Negra”, de Irwin Winkler, revela-se mais do que um filme histórico: é um espelho inquietante da fragilidade democrática e da facilidade com que o medo transforma-se em instrumento de poder. A história de David Merrill, interpretado por Robert De Niro, não é apenas a de um homem confrontado com a chantagem ideológica — é a de uma indústria inteira que, sob pressão, abdica da função artística e social para tornar-se cúmplice de uma purga silenciosa.

Hollywood, nesse período, deixou de ser fábrica de sonhos para converter-se num tribunal de suspeitas. O talento passou a ser medido não pela criatividade, mas pela lealdade política. E o silêncio, tantas vezes vendido como prudência, era na verdade o grito abafado de quem sabia que a integridade tinha um preço demasiado alto.

Rever o filme hoje, à luz das tensões contemporâneas, é perceber que os ciclos de intolerância não são exclusivos do passado. A retórica anticomunista, reciclada e adaptada, continua a servir de cortina para políticas que visam desmantelar o tecido social, enfraquecer o pensamento crítico e promover uma visão única — quase messiânica — do poder. O feiticeiro de Oz moderno não precisa de magia, apenas de uma máquina de propaganda bem oleada e de um público disposto a acreditar que o inimigo está sempre à esquerda.

Mas há também uma lição de resistência. Merrill não se dobra. E ao não se dobrar, torna-se símbolo de uma coragem que, embora rara, é essencial. Porque a cultura, quando não se rende, é o último bastião contra a barbárie. E o cinema, quando se atreve a lembrar, é mais do que entretenimento: é memória viva. 

segunda-feira, setembro 01, 2025

Le Clézio e o Continente Invisível

 

Le Clézio é um dos meus escritores preferidos, razão para a enorme alegria quando o Nobel o galardoou. Abordo cada livro seu sem pressas, absorvendo-lhe as palavras, e o que contam, com a disponibilidade de serem tão valiosas quanto o é um vinho especial para um escanção diletante.

Publicado em 2006, dois anos antes do Nobel, "Raga - Abordagem do Continente Invisível" insere-se na fase mais madura da obra de Le Clézio. Se a escrita inicial era experimental e formal, a partir de meados dos anos 70, o autor voltou-se para os povos e culturas marginalizadas, na busca da humanidade mais autêntica e primordial, longe dos excessos da civilização ocidental. O livro culmina esta longa jornada de viajante e observador, iniciada com a estadia no Panamá junto dos índios Embera e Wounaan.

Le Clézio faz-nos sentir a realidade dos lugares que descreve. Em "Raga" mergulha no arquipélago de Vanuatu, uma nação remota no Pacífico, e confronta o leitor com uma verdade dolorosa que ele próprio salienta: se a África é o continente esquecido, a Oceânia é o continente invisível. É uma invisibilidade que não se deve apenas à distância geográfica, mas à falta de interesse e à exploração histórica que a marcou.

Através da sua guia, Charlotte, Le Clézio penetra na vida quotidiana da ilha de Raga (também conhecida como Aorea), onde constata uma sociedade de paradoxos. Por um lado, há a profunda ligação do povo com a terra e a tradição; por outro, não ignora a violenta dominação do homem sobre a mulher, um tema que aborda com sensibilidade e sem julgamentos fáceis, preferindo compreender as raízes culturais desse desequilíbrio.

O autor detalha as práticas e as crenças que moldam a vida local. O artesanato específico passado de geração em geração surge como testemunho da memória coletiva e da riqueza cultural. Cada objeto não é apenas um adorno, mas uma narrativa viva, um repositório de conhecimentos e técnicas que resistem à passagem do tempo e à ameaça da globalização. Através destas peças, Le Clézio lê a história do povo, a sua cosmovisão e resiliência.

O clímax da sua observação é o relato dos saltos no vazio, um ritual de fertilidade e de passagem ao estado adulto. Conhecido como nanggol, este salto, agarrado a lianas, é uma recriação dos mitos fundadores da ilha e um ato de coragem suprema. Os saltadores, movidos pela fé e pela tradição, atiram-se de torres de madeira com lianas amarradas aos tornozelos, aterrando a poucos centímetros do chão. O autor descreve não apenas a fisicalidade do ato, mas o profundo simbolismo: é a celebração da virilidade e da força do homem, mas também uma oferta à terra para que esta seja fértil. Le Clézio capta a essência do evento, que é ao mesmo tempo uma demonstração de domínio sobre o medo e uma humilde súplica à natureza.

Contudo, "Raga" não é apenas um relato de beleza e rituais. É também um livro de denúncia. Le Clézio recorda o passado sombrio das ilhas, marcado pela escravatura de homens raptados por navios australianos — os "blackbirders" — para trabalharem nas plantações de algodão do Queensland. Estes homens, forçados a uma vida de servidão, foram arrancados às famílias e nunca mais se teve notícias deles. O autor expõe esta brutalidade, resgatando a memória de um genocídio histórico que muitas vezes é esquecido pelos manuais de história ocidentais.

Em "Raga", Le Clézio não escreve apenas sobre um lugar exótico, pois utiliza a escrita como uma ferramenta para dar voz aos que não a têm, tornando visível o que a nossa civilização insiste em ignorar. É uma obra que une a sensibilidade poética de um escritor com o rigor etnográfico de um observador atento, resultando numa leitura que é ao mesmo tempo um deleite estético e uma chamada de atenção para a fragilidade de culturas ancestrais. 

sexta-feira, agosto 29, 2025

“Em Câmara Lenta” Fernando Lopes (2017). mais do que um testamento

 

Nunca considerei Fernando Lopes um realizador maior do cinema português talvez por encontrar na maioria dos seus filmes a repetição exaustiva de um certo Portugal marialva, consciente de o ser, mas impotente na incapacidade de o domar. E, no entanto, sempre me dá prazer o retorno a essas obras por muito que, depois, sinta ser a última vez que as revisito. Até a próxima oportunidade se declarar.

“Em Câmara Lenta” surge, neste contexto, como uma obra de despedida que parece querer resolver essa tensão permanente. Realizado em 2012, quando Fernando Lopes já sabia que o tempo lhe escasseava, o filme funciona como um exercício de memória e reconciliação – não apenas com o seu percurso cinematográfico, mas com toda uma geração que se viu entre a derrocada do Estado Novo e as promessas por cumprir da democracia.

Há neste último filme uma melancolia diferente daquela que atravessava obras como “Belarmino” ou “Uma Abelha na Chuva”. Se nestes primeiros trabalhos a câmara de Lopes captava a frustração de homens presos entre códigos sociais obsoletos e desejos inconfessáveis, neste “Em Câmara Lenta” encontramos a aceitação serena do tempo que passa e das oportunidades perdidas. O próprio título é revelador: já não se trata de acelerar a narrativa para captar a urgência dos momentos decisivos, mas de desacelerar o olhar para contemplar os gestos finais.

O protagonista, um homem maduro que regressa aos locais da juventude, funciona como alter ego do próprio realizador. Através dele, Fernando Lopes revisita não só a sua filmografia, mas todo um universo cultural que parecia estar em vias de extinção já nos anos 60 e que, cinco décadas depois, revela-se definitivamente arqueológico. O Portugal marialva que tanto criticara nos filmes anteriores surge agora despido de qualquer nostalgia romantizada, mas também liberto da indignação que o caracterizava.

A câmara move-se com uma lentidão deliberada, como se quisesse gravar para sempre cada detalhe de um mundo que está a desaparecer. Os enquadramentos, menos ousados que nos filmes da juventude, ganham uma precisão quase documental. Fernando Lopes parece ter encontrado, finalmente, a distância certa para observar o país sem julgamentos precipitados.

“Em Câmara Lenta” é, assim, mais do que um testamento cinematográfico – é um exercício de reconciliação com uma obra que sempre oscilou entre a fascinação e a repulsa pelo Portugal que retratava. Neste último filme, Fernando Lopes consegue o que talvez nunca tinha conseguido: olhar o passado sem rancor, o presente sem ilusões, e deixar um registo final que, pela primeira vez, nos convence de que vale a pena revisitar. Sem reservas, desta vez. 

A Arte como Território de Resistência

 

Num tempo em que os relatórios científicos acumulam-se como epitáfios do planeta, a arte ergue-se como uma linguagem de resistência, cuidado e transformação. Mais do que uma expressão estética, ela torna-se território ético, ferramenta política e instrumento ecológico. A crise climática, que ameaça não apenas os ecossistemas mas também as culturas, as identidades e os modos de vida, exige uma resposta que vá além da técnica — exige imaginação coletiva. E é nesse espaço que artistas como Joseph Beuys, Sebastião Salgado, e tantos outros a operarem na intersecção entre arte e natureza, revelam o poder da criação como gesto de cura.

Em 1982, Beuys propôs a plantação de 7000 carvalhos em Kassel, cada um acompanhado por uma coluna de basalto. A obra, intitulada “7000 Eichen – Stadtverwaldung statt Stadtverwaltung”, não era apenas paisagística — era profundamente política. Beuys via a arte como escultura social, onde cada cidadão é coautor da transformação do mundo. Ao plantar árvores, ele plantava ideias: de regeneração, de participação, de resistência à lógica urbana que separa o humano do natural.

A obra de Beuys inscreve-se na tradição da land art, mas subverte o seu carácter contemplativo ao propor uma ação coletiva e duradoura. A floresta que cresce é também uma metáfora da consciência que se expande. Beuys não queria apenas mudar a paisagem — queria reflorestar o pensamento.

Décadas depois, no Brasil, Sebastião Salgado enfrentava uma devastação pessoal e ambiental. Após anos a documentar o sofrimento humano — da guerra à migração forçada — regressou à fazenda da família em Minas Gerais e encontrou um cenário árido. Com sua esposa, Lélia Wanick Salgado, decidiu plantar uma floresta. Nascia o Instituto Terra, que já recuperou centenas de hectares da Mata Atlântica, devolvendo vida a nascentes, fauna e flora.

Mas Salgado não deixou de fotografar. Em séries como Gênesis, ele revela a beleza intacta de ecossistemas ameaçados, povos indígenas e paisagens remotas. A sua fotografia é testemunho e alerta, documento e oração. Ao unir imagem e ação, Salgado mostra que a arte pode ser denúncia e cuidado, memória e futuro.

Além de Beuys, outros artistas da land art contribuíram para a consciencialização ambiental. Robert Smithson, com a Spiral Jetty, inscreveu uma espiral de rochas no Grande Lago Salgado, evocando a relação entre o tempo geológico e a intervenção humana. Nancy Holt, com Sun Tunnels, criou estruturas que dialogam com o sol e o deserto, revelando a beleza dos ciclos naturais.

Esses artistas não pretendiam apenas modificar a paisagem — queriam revelar a sua fragilidade, expor a temporalidade, convidar à contemplação ativa. A land art, ao deslocar a arte dos museus para o território, transforma o solo em tela, o vento em pincel, o tempo em matéria.

Nos últimos anos, surgiram artistas que ampliam essa tradição com práticas mais diretamente ligadas ao ativismo climático. Olafur Eliasson, por exemplo, trouxe blocos de gelo da Groenlândia para o centro de Londres em Ice Watch, permitindo que o público tocasse o derretimento em tempo real. A obra é uma experiência sensorial e política: o gelo que derrete nas mãos é o planeta que escapa entre os dedos.

Agnes Denes, pioneira da arte ecológica, plantou um campo de trigo em Manhattan em 1982 (Wheatfield – A Confrontation), confrontando o valor da terra com o valor do capital. A obra é um manifesto silencioso contra o desperdício, a desigualdade e a desconexão urbana.

Esses artistas não representam apenas a crise — intervêm nela, provocam, mobilizam. A arte torna-se ação direta, performance ambiental, educação sensível.

A crise climática não é apenas uma questão de carbono — é uma crise de perceção, de valores, de narrativas. Os dados existem, mas não comovem. As estatísticas alertam, mas não transformam. É preciso sentir o colapso, ver o desaparecimento, imaginar o que ainda pode ser salvo.

A arte, nesse contexto, é ponte entre o saber e o sentir. Ela traduz o invisível, dá forma ao impalpável, mobiliza afetos que a razão isolada não alcança. Ao mostrar o que está em risco — seja uma floresta, uma cultura, uma nascente — a arte convoca à ação.

Joseph Beuys plantou carvalhos como quem planta ideias. Sebastião Salgado plantou árvores como quem planta esperança. Robert Smithson desenhou espirais como quem desenha o tempo. Olafur Eliasson derreteu gelo como quem derrete certezas. Todos, à sua maneira, mostram que a arte pode ser semente e raiz, denúncia e cuidado, memória e ação.

Num mundo em que os oceanos sobem e as florestas ardem, a arte pode ser o que resta — ou o que renasce. Ela não substitui a ciência, mas complementa com sensibilidade. Não resolve o colapso, mas prepara o terreno para a mudança. E talvez, no silêncio de uma árvore que cresce ou no olhar de uma criança que vê uma fotografia, esteja o início de um novo mundo. 

quinta-feira, agosto 28, 2025

"Dulcineia" De Artur Serra Araújo (2023): a sombra que o cinema perdeu

 

Existem ideias tão poderosas na literatura que parecem estar fadadas a serem recontadas, a saltar de geração em geração, de autor para autor. A história de Peter Schlemihl, o homem que vendeu a sua sombra, é uma delas. A sua busca desesperada por aquilo que o torna visível e inteiro é um arquétipo tão forte que o vimos reaparecer na melancolia de António Tabucchi, e, de certa forma, até no filme português "Dulcineia".

Só que há uma diferença crucial. Se Schlemihl perseguia a  sombra perdida, o protagonista de "Dulcineia", o escritor Hugo, vê a sua sombra—o seu gémeo bem-sucedido — chegar abruptamente e impor-se na sua vida. A promessa era fascinante: explorar a crise de identidade de um artista no seu ano sabático, confrontado com a versão de si mesmo que triunfou.

O problema é que, entre a ideia e a sua execução, algo se perdeu. Enquanto a história de Chamisso é uma alegoria atemporal sobre o que nos define, "Dulcineia", infelizmente, não consegue traduzir essa profundidade para o ecrã. O que deveria ser um confronto psicológico intenso com o "outro eu" torna-se num enredo confuso e superficial.

As análises da altura não perdoaram. O filme foi descrito como "incapaz de refletir o que quer que seja" e "pouco polido". A atuação, apesar do desafio do duplo papel de António Parra, não conseguiu dar vida e substância a um enredo que parecia mais um rascunho de uma boa ideia do que um filme propriamente dito.

No fundo, "Dulcineia" mostra quão difícil é adaptar uma ideia literária com tamanha carga simbólica. Nas mãos de Chamisso e Tabucchi, a sombra era uma metáfora para a essência humana, para o desejo, para a busca. No filme de Artur Serra Araújo, essa sombra é mais um artifício de enredo, que acaba por não dizer grande coisa.

No final, ficamos com a sensação de que, apesar de um ponto de partida brilhante, o filme não consegue encontrar o seu próprio lugar ao sol. A "Dulcineia", a melodia que o protagonista persegue, perde-se no caminho, deixando-nos com a sensação de que a história, tal como a sombra de Peter Schlemihl, ainda está à procura de casa. 

terça-feira, agosto 26, 2025

“O Caçador” de Michael Cimino (1978): a persistência de um olhar reacionário

 

Há uns meses vi o Mário Augusto defender com unhas e dentes "O Caçador" de Michael Cimino. Ora, o filme foi, na época, um dos meus ódios de estimação, subscrevendo então as cobras e lagartos, que a Jane Fonda dele dissera para fundamentar a qualificação de reacionário.

Passadas décadas sobre a sua estreia, o filme de Cimino não só mantém intactas as suas características mais problemáticas, como o tempo veio revelar a profundidade da sua visão ideologicamente enviesada. Longe de ser apenas um retrato do trauma de guerra, "O Caçador" constrói uma narrativa que sistematicamente apaga a realidade histórica em favor de uma mitologia reconfortante para o público americano.

A representação dos vietnamitas em "O Caçador" não é meramente descuidada – é estruturalmente orientalista. Os vietnamitas aparecem exclusivamente como sádicos desumanizados, desprovidos de qualquer motivação política ou histórica compreensível. A famosa sequência da roleta russa, além de historicamente infundada, serve como metáfora perfeita do que o filme faz: transforma uma guerra de libertação nacional complexa numa espécie de jogo macabro perpetrado por asiáticos intrinsecamente cruéis.

Esta estratégia narrativa não é inocente. Ao retirar qualquer contexto político ao conflito vietnamita, Cimino consegue apresentar a intervenção americana como uma tragédia cósmica, em vez de uma agressão imperialista com consequências devastadoras para milhões de pessoas. Os americanos surgem como vítimas de forças incompreensíveis e irracionais, nunca como participantes de uma guerra que eles próprios desencadearam.

O filme utiliza o retrato da comunidade operária de origem eslava como uma espécie de álibi moral. Cimino constrói um mundo de solidariedade masculina, rituais comunitários e valores tradicionais que a guerra virá destroçar. Esta nostalgia pela América da classe trabalhadora branca funciona como escudo contra acusações de elitismo, mas esconde uma operação ideológica mais subtil.

Ao centrar a narrativa numa comunidade específica – branca, católica, patriarcal –, o filme consegue universalizar uma experiência particular, apresentando-a como representativa de toda a América. As questões raciais, os movimentos de protesto, a diversidade das experiências da guerra, tudo isso desaparece em favor de uma visão homogénea e nostálgica que ignora as divisões reais da sociedade americana dos anos 60 e 70.

"O Caçador" tem uma abordagem do trauma de guerra que se tornaria dominante no cinema americano: a psicologia em detrimento da politica. Ao concentrar-se nos efeitos psicológicos da guerra sobre os indivíduos, o filme evita sistematicamente questionar as causas políticas desses mesmos traumas.

Michael (Robert De Niro) regressa transformado, mas nunca questionamos o sistema que o enviou para o Vietnam. Nick (Christopher Walken) perde-se na roleta russa, mas a sua deriva é apresentada como consequência de uma crueldade asiática inexplicável, não como resultado de uma guerra imperialista. Steven (John Savage) fica mutilado, mas a sua condição surge como fatalidade, não como responsabilidade política.

Esta estratégia permite ao filme gerar compaixão pelos veteranos sem nunca confrontar as estruturas de poder que os instrumentalizaram. O sofrimento individual torna-se espetáculo catártico que dispensa a análise política.

Talvez o aspeto mais insidioso de "O Caçador" seja a forma como reescreve a história do conflito vietnamita. O filme não só ignora a realidade da guerra – as suas origens coloniais, a resistência legítima do povo vietnamita, a brutalidade das forças americanas –, como constrói uma contranarrativa que inverte as posições de agressor e vítima.

Na versão de Cimino, os americanos são turistas inocentes apanhados numa violência incompreensível. Os vietnamitas são sádicos sem motivação. A guerra torna-se um encontro entre a civilização e a barbárie, em que a civilização (branca, cristã, ocidental) sai derrotada não por falhas próprias, mas pela irracionalidade do outro.

Quarenta anos depois, as opções ideológicas de "O Caçador" revelam-se ainda mais problemáticas. Numa época em que a América continua a intervir militarmente pelo mundo fora, o modelo narrativo inaugurado por Cimino – que transforma agressores em vítimas e apaga as perspetivas dos colonizados – mantém-se perigosamente atual.

A defesa contemporânea do filme, que tende a invocar a sua qualidade artística ou a legitimidade do sofrimento dos veteranos, ignora a dimensão política da representação. Como se a excelência técnica pudesse neutralizar a violência ideológica, ou como se a compaixão pelos soldados americanos justificasse o apagamento dos povos que eles ajudaram a massacrar.

Jane Fonda tinha razão: "O Caçador" é um filme reacionário. Não pela oposição explícita ao progresso social, mas pela forma subtil como reconstrói a memória histórica em favor das narrativas dominantes do poder. É um filme que ensina o espectador a sentir empatia pelos opressores e a esquecer os oprimidos. E essa lição, infelizmente, continua a fazer escola.

Ser ou tornar-se mulher

 

Sempre dei a Simone Beauvoir o crédito pela tese de não se nascer mulher, sendo esta uma condição (social) que se adquire. E, no entanto, duas décadas antes já Margaret Mead, com o ensaio sobre os usos e costumes das sociedades primitivas, dava uma demonstração antropológica dessa tese. Numa altura em que as direitas extremas procuram enfatizar as virtudes da "masculinidade" nas sociedades ocidentais vale a pena voltar a ambas as escritoras para desmascarar as falácias misóginas.

Mead fez o que Beauvoir, como filósofa, não podia fazer: levou a tese do papel social do género para o campo da prova empírica. Em "Sexo e Temperamento em Três Sociedades Primitivas", ela confrontou a sua própria cultura com a diversidade da natureza humana. Observando as comunidades da Nova Guiné, Mead encontrou sociedades onde o que era "masculino" ou "feminino" invertia-se ou simplesmente desaparecia.

Nos pacíficos Arapesh, por exemplo, tanto homens como mulheres eram criados para serem afáveis e cooperativos, com uma abordagem "maternal" à vida. Agressividade ou competitividade eram vistas como desvios e não como traços inerentes a qualquer sexo. Já nos Mundugumor, o quadro era o oposto: ambos os sexos eram educados para serem agressivos, competitivos e desconfiados. Os homens não detinham o monopólio da agressão, nem as mulheres o da mansidão. Por fim, nos Tchambuli, Mead encontrou a inversão mais radical dos papéis ocidentais: as mulheres eram as líderes pragmáticas, que controlavam o comércio e a pesca, enquanto os homens passavam o tempo em rituais artísticos e na busca pela aprovação feminina.

A lição de Mead é que não existe um temperamento intrinsecamente "masculino" ou "feminino". Os traços que valorizamos na nossa sociedade, como a força e a liderança no homem e a empatia e o cuidado na mulher, são, afinal, construções culturais arbitrárias. Ao demonstrar que a humanidade é capaz de uma infinita variedade de configurações de género, Mead esvazia o argumento central de qualquer ideologia misógina que defenda o "regresso" a um suposto estado natural de masculinidade. A ideia de que existe uma "natureza" do homem ou da mulher, à qual se deve obedecer para o bem da sociedade, é revelada como uma ficção, uma ferramenta para justificar a manutenção de um poder desigual.

Em última análise, tanto Mead como Beauvoir oferecem a mesma arma: o conhecimento de que o género é uma construção, não um destino. As suas obras continuam a ser a resposta mais lúcida àqueles que procuram aprisionar homens e mulheres em caixas pré-fabricadas. 

segunda-feira, agosto 25, 2025

Blade Runner 2049 de Dennis Villeneuve (2017): A insistência num certo conceito de “alma”

 

Os amigos sabem-no bem demais e, alguns deles até me têm contrargumentado com as suas razões para dissuadirem-me do que penso, mas bem sabem como não vale a pena: sei que a ciência do século XX, e a já prosseguida por este século adentro, é prenhe em provas em como a “alma” humana não existe e essa coisa do “espírito” não é mais do que a manifestação engenhosa da matéria de que somos feitos. Não é por acaso que, vendo como se estilhaça o logro em que assentaram as religiões e todas as "filosofias" de vida - que tanto proveito deram a uns quantos vigaristas do pensamento! -, sejam os governos das direitas e das direitas extremas, com Trump na primeira linha, mas com o de Montenegro a seguir-lhe a peugada com a extinção da FCT e do notável legado de Mariano Gago, a tomar a ciência como inimiga. É nesses pressupostos, que olho para “Blade Runner 2049” com a resistência de quem não aceita essa ideia de replicantes com ou sem "alma".

A estética do filme é interessante, mas é precisamente esse espalhafato que serve de véu para uma ideia que incomoda: a romantização da consciência artificial como substituto da alma humana. A personagem K, um replicante que começa a questionar a sua origem e lugar no mundo, é apresentada como alguém que sofre, ama, deseja — como se essas experiências fossem suficientes para lhe conferir humanidade. Mas será que são?

O filme não é uma ode à liberdade dos seres artificiais, mas antes uma tentativa de reabilitar a velha crença na transcendência, agora reciclada em linguagem tecnológica. A “alma” que, dantes, era dom divino, surge aqui como produto emergente da complexidade computacional. E é nesse ponto que o filme me perde: não por falta de competência de quem o fez ou de densidade narrativa, mas por insistir numa ilusão que a ciência já desmontou.

O que interessa não é a pergunta “os replicantes têm alma?”, mas sim “por que continuamos a querer que tenham?”. Talvez porque, ao atribuir “alma” ao que é feito de silício e código, possamos continuar a acreditar que também nós somos mais do que carne e impulsos elétricos. É uma forma de consolo — sofisticada, sim, mas ainda assim consolo.

Há algo de profundamente humano na recusa da alma. Na aceitação de que somos matéria pensante, perecível, contraditória. “Blade Runner 2049”, ao tentar elevar os replicantes à condição de sujeitos “espirituais”, acaba por reforçar uma nostalgia metafísica que já não tem fundamento.

Prefiro a crueza da biologia à poesia da simulação.

O Concerto Brandeburguês nº 1 de Johann Sebastian Bach

 

Os seis Concertos de Brandenburgo foram compostos por Johann Sebastian Bach por volta de 1718-1721, durante o período em que foi Mestre de Capela na corte de Cöthen. Bach dedicou-os ao Margrave Christian Ludwig de Brandenburg-Schwedt em 1721, enviando-lhe a partitura manuscrita como uma espécie de "cartão de visita" musical, possivelmente na esperança de obter um posto na sua corte.

O Concerto nº 1 em Fá maior (BWV 1046) é interpretado com duas trompas, três oboés, fagote, cordas e cravo. É o mais longo e complexo da coleção, com quatro movimentos (os outros têm três). O último movimento inclui uma seção de dança com trios sucessivos, mostrando a influência da música de dança francesa.

A gravação dos Concertos de Brandenburg pela Orchestra Mozart sob a direção de Claudio Abbado foi realizada em 21 de abril de 2007 no Teatro Municipale Romolo Valli, em Reggio Emilia, Itália. O álbum foi lançado em março de 2011 pela Deutsche Grammophon.

Esta interpretação ganhou relevância por várias razões importantes: a Orchestra Mozart foi criada em novembro de 2004 por Claudio Abbado, combinando jovens instrumentistas no limiar de carreiras de primeira linha com eminentes músicos de câmara  Abbado selecionou pessoalmente este ensemble, tal como fizera com a famosa Orquestra do Festival de Lucerna, desta vez focado especificamente na música barroca e do período clássico.

Esta gravação representou uma síntese única entre a tradição interpretativa moderna e a sensibilidade histórica. Abbado, conhecido por interpretações profundamente humanizadas da música sinfônica romântica e moderna, trouxe essa mesma sensibilidade poética aos Brandenburgueses, oferecendo uma perspetiva diferente das historicamente informadas que dominavam o repertório barroco na época.

A gravação contou com solistas de renome internacional, incluindo Giuliano Carmignola (violino), Ottavio Dantone (cravo), Michala Petri (flauta) e Reinhold Friedrich (trompete) garantindo execuções tecnicamente impecáveis e musicalmente expressivas.

Esta foi uma das últimas grandes gravações barrocas de Abbado com a gravação a demonstrar como um maestro formado na tradição sinfônica moderna poderia abordar Bach com emotividade, sem sacrificar o rigor estilístico.

A interpretação foi bem recebida pela crítica e permanece como um testemunho da versatilidade artística de Abbado e da excelência da Orchestra Mozart.