sábado, outubro 25, 2025

Os cogumelos do Apocalipse

 

A leitura da entrevista com a bióloga Audrey Dussutour, na edição do Libération desta sexta-feira, causou-me viva impressão porque, mesmo tendo levado a vida a contactar, ou contrair, eczemas, micoses, candidas e dermatites várias, sempre as considerei benignas e as desprezei como coisas menores, superáveis com pomadas e comprimidos.
Que não é tanto assim diz a autora de
Les champignons de l’Apocalypse, autêntico reportório de ideias para filmes de terror.

Mas Dussutour não escreve ficção. Fala de um mundo real — o dos fungos — que se revela muito mais vasto, resistente e perigoso do que a imaginação popular costuma admitir. São organismos antigos, discretos, mas onipresentes: colonizam solos, corpos, florestas e cidades, sobrevivendo onde quase mais nada sobrevive. A autora descreve um planeta silenciosamente dominado por eles, uma teia subterrânea que sustenta e ao mesmo tempo ameaça a vida.

Entre as histórias que relata estão as dos fungos que transformam formigas em zombies — controlando-lhes o comportamento até a morte —, os que exterminam espécies inteiras de anfíbios ou destroem plantações essenciais à alimentação humana. Mas o espanto maior é perceber que essa potência invisível também ronda os corpos humanos, invadindo pulmões, unhas, mucosas e, cada vez mais, sistemas imunológicos enfraquecidos.

Dussutour lembra que, enquanto os vírus e as bactérias atraem a atenção e os investimentos da ciência, os fungos permanecem em grande parte negligenciados — e, por isso mesmo, perigosos. Resistentes aos tratamentos, adaptam-se rapidamente e encontram terreno fértil nas alterações climáticas, nas viagens globais, nas condições hospitalares modernas. Um inimigo discreto, persistente, que não se anuncia com o estrondo de uma pandemia, mas com o lento avanço de uma mancha na pele, de uma infeção recorrente, de uma febre que não passa.

A leitura desperta uma sensação ambígua: fascínio e desconforto. Porque os fungos são também criadores — fabricam antibióticos, reciclam matéria, mantêm as florestas vivas. São ambíguos por natureza: salvadores e assassinos, alquimistas da decomposição. E talvez por isso Les champignons de l’Apocalypse seja mais do que um alerta científico; é um ensaio sobre o poder da vida em suas formas menos visíveis, sobre a força que cresce na sombra.

No fim, o que Dussutour parece dizer é que o apocalipse já começou, mas não com explosões ou meteoros — começou nos interstícios, nas fissuras da pele, no subsolo húmido, no invisível. E a única defesa possível talvez seja a consciência: olhar de frente o que antes ignorávamos, reconhecer nos fungos não apenas os inimigos que adoecem, mas também os mestres que lembram o quanto a vida depende, inevitavelmente, da decomposição de outra.

quinta-feira, outubro 23, 2025

À procura de um tempo suspenso

 

Confesso que, apesar de partir para cada filme de Margarida Gil com a melhor das predisposições para deles me agradar, a sensação que me deixam é de algum desconcerto. No caso de "Mãos no Fogo" (2024) temos uma jovem documentarista apostada em recolher imagens para a demonstração de um mundo que, ainda real, é sobretudo fantasmático por ter a ver com um passado cristalizado no tempo e já sem qualquer ligação com o presente. Mas que pode transformar-se numa armadilha perigosa...

Maria do Mar, jovem estudante de cinema interpretada por Carolina Campanela - nome que evoca, não por acaso, o clássico mudo de Leitão de Barros -, está a acabar um documentário sobre os velhos solares do Douro que servirá para sustentar a sua tese sobre o Real no Cinema. Mar tem uma confiança ilimitada no "visível" e a candura, a par da ingenuidade, também a inclinam para ver o lado bom das coisas: a beleza da paisagem, o que ainda há de genuíno nas pessoas e seus costumes. Contudo, depressa se apercebe que o que se vive dentro daquela mansão não é assim tão inocente. Trata-se de uma verdadeira casa de horrores, onde o passado não é apenas memória mas presença opressiva e potencialmente destrutiva.

É aqui que Margarida Gil revela a fidelidade à ambiência de Henry James: a capacidade de transformar casas antigas em organismos vivos, carregados de segredos inconfessáveis, onde a inocência de quem chega de fora confronta-se com uma decadência que é simultaneamente social, moral e psicológica. A ambiguidade jamesiana está presente em cada plano, nessa zona cinzenta onde não se sabe ao certo se o perigo é real ou imaginado, se o que vemos é documento ou fantasmagoria. A própria Mar, armada com a sua câmara e crença no real, descobre que há realidades que a objetiva não consegue capturar - ou que, capturando-as, revelam mais do que seria desejável.

A fotografia de Acácio de Almeida continua exemplar, como sempre. Ele sabe filmar esses espaços carcomidos pelo tempo, essas paredes onde a humidade e a História se confundem, esses interiores sombrios que contrastam com a luz do Douro lá fora. Há uma cena de banho no rio entre Campanela e Francisco Vistas que dialoga diretamente com o filme mudo homónimo, mas Acácio transforma esse momento erótico numa suspensão temporal - como se, por instantes, fosse possível escapar ao peso daquela casa, daquele passado que insiste em não passar.

O desconcerto que o filme provoca talvez venha precisamente desta tensão nunca resolvida: Margarida Gil nunca sentiu que teria de pedir licença para filmar aquilo que queria, aquilo que via através da câmara. "Mãos no Fogo" é um filme de risco assumido por quem deseja recentrar o olhar no cinema, em vez do audiovisual, do streamer ou algo equivalente. Mas esse risco implica deixar o espectador num território incerto, entre o documental e o gótico, entre a tese académica de Mar sobre o real e a descoberta perturbadora de que o real, afinal, pode ser a mais perigosa das ficções. Com os atores da saudosa Cornucópia a habitarem aqueles espaços com a intensidade de quem conhece os textos por dentro, o filme transforma-se numa reflexão sobre o próprio ato de filmar - e sobre os perigos de apontar a câmara para lugares onde o passado ainda respira.

quarta-feira, outubro 22, 2025

A contracorrente das mistificações da História

 

Numa altura em que cresce a importância política de quem olha para a História portuguesa e a vê como uma sucessão de atos heróicos em prol da civilização dita cristã, o cinema anda, a contracorrente, a dar-lhe a outra versão, a verdadeira, que é a de sermos um país com um sinistro cadastro de escravização dos povos africanos e da rentabilização do seu trabalho ou da sua venda.

"Banzo", de Margarida Cardoso, é um dos exemplos mais recentes e contundentes deste cinema que não desvia o olhar. Ambientado em 1907 numa ilha tropical africana - São Tomé e Príncipe -, o filme parte de um fenómeno real e devastador: o banzo, termo derivado de "mebanza" do quimbundo angolano (que significa casa), designava uma doença que afetava pessoas escravizadas, uma profunda nostalgia que as conduzia a estados de prostração e, finalmente, ao suicídio. Vários trabalhadores, depois de terem perdido o gosto pela vida, entregavam-se à morte através de diversas formas de autodestruição, numa condição que se convencionou chamar "nostalgia dos escravizados".

O contexto histórico é essencial: estamos já depois da abolição oficial da escravatura, mas os sistemas de trabalho contratado para as plantações mantinham exatamente as mesmas práticas opressivas, replicadas em muitos países coloniais com economia de plantação. A mudança de nomenclatura não alterava a realidade: a exploração continuava, apenas com outro nome, outro disfarce legal. E é neste ambiente que Margarida Cardoso coloca o médico Afonso, interpretado por Carloto Cotta, enviado da metrópole para curar um grupo de trabalhadores negros que estão a morrer por causa desta tristeza profunda e inexplicável para a mentalidade colonial.

O filme revela as cicatrizes emocionais e psicológicas deixadas pelo colonialismo, explorando a condição de quem foi arrancado de casa, de quem perdeu a ligação com a terra e com a própria identidade. Afonso tenta compreender as razões desta crise de apatia e melancolia, mas acaba por aceitar ir com os serviçais até um sítio remoto onde era suposto os doentes encontrarem alguma autonomia pessoal. É uma jornada que se revela tanto física como moral, obrigando o médico - e por extensão o espectador - a confrontar-se com a violência sistémica de um império que se recusava a ver-se ao espelho.

Não é por acaso que "Banzo" foi escolhido para representar Portugal nos Óscares 2026 na categoria de Melhor Filme Internacional. É um filme que aborda a herança do colonialismo português em África, revisitando memórias e cicatrizes históricas através de um olhar contemporâneo, com forte componente visual e narrativa intimista. É cinema que funciona como contranarrativa necessária, devolvendo dignidade e complexidade a vidas que a História oficial preferia manter na sombra ou transformar em mera estatística colonial. 

terça-feira, outubro 21, 2025

Aceitar que nem tudo tem solução

 

Juro que não faço de propósito, mas os temas vêm ao meu encontro como se estivessem à espreita para virem dialogar com as obsessões atuais. Acontece com "A Zona", filme realizado por Sandro Aguilar em 2008 e cujo tema é o do luto. Ora, para quem está a viver o chamado "luto branco" ,vendo a Elza afundar-se mais e mais na inconsciência permanente suscitada pela doença, ver este filme está a comportar um misto de muitas emoções. Catárticas nuns casos, mas muito dolorosas nos demais. Porque há o sentimento de perda e a inevitável abulia de quem não apetece reagir ao infortúnio dessa situação. E, muito inteligentemente, sucedem-se imagens quase sem diálogos em que os barulhos do ambiente acompanham personagens que sabem estulta qualquer esperança em que algo de bom aconteça. É um filme que vem ao encontro do que vou vivendo no dia-a-dia e sei iminente num futuro nada distante.

Esta gramática do silêncio e dos vazios faz-me pensar, inevitavelmente, no cinema de Yasujiro Ozu. Também ele trabalha com uma câmara que observa mais do que dramatiza, posicionada ao nível do solo nos célebres planos tatami, capturando um Japão em mudança onde a vida moderna e ocidentalizada põe cobro à época em que várias gerações conviviam dentro da mesma casa. É um mundo de pausas, de olhares contidos, de gestos mínimos - antítese absoluta dos climaxes dos filmes norte-americanos que tanto contribuíam para pôr em causa esse universo identitário definitivamente condenado. Ozu filma, no fundo, outra forma de luto: a despedida lenta de um mundo tradicional que se esvanece perante a modernidade implacável.

Há qualquer coisa de profundamente japonês nesta aceitação contemplativa da perda, nesta recusa do melodrama ou da revolta espetacular. Os mesmos atores regressam filme após filme, distribuídos por personagens que enfrentam variações da mesma melancolia existencial. E talvez seja isto que aproxima Aguilar de Ozu, apesar das distâncias culturais e temporais: ambos compreendem que há perdas que não se gritam, que não se dramatizam, que apenas se habitam. A câmara torna-se então testemunha paciente de algo que se desvanece - seja uma vida, seja um modo de vida. O som ambiente substitui a música emocional, os silêncios dizem mais que os diálogos, e nós, espectadores, somos convidados, não a consumir uma história, mas a partilhar uma experiência de dissolução.

É cinema que exige de nós aquilo que a própria vida nos exige quando enfrentamos o irreparável: a capacidade de permanecer, de observar, de aceitar que nem tudo tem resolução ou catarse definitiva. Apenas o lento e doloroso trabalho de habitar a ausência. 

sábado, outubro 18, 2025

Nova vida para a mandolina

 

Avi Avital não escolheu a mandolina por acaso — ou talvez tenha sido ela a escolhê-lo. Começou a tocá-la ainda criança, em Be’er Sheva, Israel, e desde então nunca mais a largou. O que poderia ter sido apenas um instrumento de iniciação tornou-se, com o tempo, o centro de uma missão artística: devolver à mandolina o lugar que lhe foi retirado na história da música erudita.

Durante séculos, a mandolina viveu entre salões aristocráticos e festas populares, com um pé na corte e outro na rua. Mas com o avanço da orquestra sinfónica e a canonização de instrumentos como o violino e o piano, foi sendo empurrada para os bastidores — associada ao folclore, à nostalgia, ao amadorismo. Avital, com uma mistura rara de virtuosismo e inquietação, decidiu contrariar essa tendência. Não por capricho, mas por convicção: há coisas que só a mandolina pode dizer.

Ao transcrever obras de Bach — como as Partitas e Sonatas para violino solo — Avital revela algo surpreendente: a mandolina, com clareza tímbrica e articulação precisa, parece mais próxima da sonoridade que escutava-se na época do compositor do que muitos instrumentos modernos. Sem vibrato excessivo, sem dramatizações românticas, o contraponto emerge limpo, quase como se Bach tivesse escrito a pensar nela.

Mas Avital não se limita a olhar para trás. Encomenda obras novas, colabora com compositores contemporâneos, mistura tradições mediterrânicas com técnicas modernas. A mandolina, nas suas mãos, não é apenas recuperada — é reinventada. E com isso, ganha uma nova voz: capaz de dialogar com o barroco, mas também com o presente.

O que Avital faz não é apenas tocar — é escavar, reconstruir, propor. E ao fazê-lo, convida-nos a escutar de outro modo: com menos preconceito, mais curiosidade. A mandolina, afinal, não é um instrumento menor. É apenas um instrumento que esperava por alguém que o levasse a sério. 

segunda-feira, outubro 13, 2025

Entre a militância e um beijo icónico

 


O Beijo do Hotel de Ville (1950) é provavelmente a fotografia mais célebre de Robert Doisneau. A imagem a preto e branco de um casal a beijar-se apaixonadamente numa rua de Paris, junto ao Hotel de Ville, tornou-se um ícone universal do romantismo francês. Reproduzida em milhões de postais e posters a partir dos anos 1980, esta fotografia chegou a bater recordes mundiais de tiragem, com 410.000 exemplares impressos em 1986.

Contudo, a história por detrás desta imagem revela o método artístico de Doisneau e o contexto de uma época. Longe de ser um momento espontâneo capturado ao acaso, a fotografia foi, na verdade, uma encenação. Doisneau recebera uma encomenda da revista americana Life para ilustrar o tema "o amor em Paris na primavera", e ao avistar um casal de jovens estudantes de teatro num café — Françoise Bornet e Jacques Carteaud — propôs-lhes que posassem para ele, mediante o pagamento de 500 francos da época. O beijo foi encenado, mas o cenário à volta — os figurantes, as mesas de café, a luz da cidade — era genuinamente parisiense. Doisneau construía assim uma verdade poética a partir de elementos reais, um método que caracterizou toda a sua obra de fotojornalismo humanista.

Mas Robert Doisneau foi muito mais do que o autor de uma imagem romântica. Antes de tornar-se cronista da vida parisiense, Doisneau foi um homem da Resistência. Durante a ocupação nazi da França, entre 1940 e 1944, juntou-se ao movimento clandestino que combatia os ocupantes alemães e o regime colaboracionista de Vichy. Utilizando as competências como fotógrafo, documentou a resistência, a ocupação e, finalmente, a libertação da França. Numa época em que cada fotografia podia significar a diferença entre a vida e a morte — tanto para quem fotografava como para os fotografados —, Doisneau colocou a arte ao serviço de uma causa que transcendia o estético: a luta pela liberdade.

Até 1940, servira o exército francês. Com a derrota e a ocupação, escolheu o caminho da clandestinidade. As suas imagens desse período constituem um testemunho histórico fundamental, mas também um ato de coragem. Fotografar a Resistência era fotografar o indizível, o que não podia ser mostrado sob pena de represália brutal. Era transformar a câmara fotográfica numa arma silenciosa mas poderosa de memória e de luta.

Após a guerra, o compromisso político de Doisneau não esmoreceu. Aderiu ao Partido Comunista Francês e à CGT, a histórica central sindical francesa, partilhando as esperanças e as lutas de reconstrução de uma França devastada. A sua fotografia refletiu sempre essa sensibilidade de esquerda: os trabalhadores, os bairros populares, as crianças das periferias, os pequenos comércios, os cafés de bairro. Doisneau fotografava as pessoas comuns com uma dignidade e uma ternura que nunca as diminuía. Ao contrário, celebrava a beleza e a humanidade dos gestos quotidianos, a poesia escondida nas ruas de Paris.

Esta visão humanista não era apenas estética. Era também política. Num mundo dilacerado pela guerra e pela desigualdade, Doisneau escolheu fotografar aqueles que, habitualmente, ficavam invisíveis. Em 1946, iniciou a colaboração com o semanário Action, e a sua lente captou greves, manifestações, mas também momentos de alegria e de resistência cultural. A sua militância comunista não era dogmática: era a expressão de uma crença profunda na dignidade do povo, no valor do trabalho, na beleza da solidariedade.

Há quem critique Doisneau por encenar muitas das suas fotografias, vendo nisso uma traição à "verdade" documental. Mas essa crítica ignora a essência do seu projeto artístico. Doisneau sabia que toda a fotografia é, em certo sentido, uma construção. O que o interessava não era capturar um suposto "real" objetivo, mas criar imagens que revelassem uma verdade emocional, uma verdade sobre a condição humana. O beijo encenado do Hotel de Ville diz mais sobre o amor e sobre Paris do que mil fotografias "espontâneas" poderiam dizer. E as suas imagens da Resistência, mesmo quando tecnicamente imperfeitas, testemunham a época com uma força que nenhum relato abstrato poderia igualar.

Robert Doisneau faleceu em 1994, poucos dias antes de completar 82 anos. Deixou um legado imenso: não apenas de imagens icónicas, mas o modo de olhar o mundo que atravessou a escuridão da guerra e da ocupação nazi, se comprometeu com a causa dos trabalhadores e dos oprimidos, e nunca deixou de acreditar na beleza possível — mesmo encenada, mesmo construída — da vida humana. O beijo do Hotel de Ville é, no fundo, um beijo de esperança: a que levou um jovem fotógrafo a arriscar a vida para mostrar ao mundo que Paris, e a humanidade, podiam voltar a sonhar.