quinta-feira, agosto 16, 2007

AS VIAGENS DO SENHOR FREUD

Sigmund Freud adorava viajar. Uma cidade desconhecida ou um cenário estranho, eram para ele uma porta aberta para o seu íntimo. Uma espécie de espelho da alma.
Por isso mesmo, Freud passará a vida a cirandar de um lado para o outro. Sobretudo para dar satisfação à sua vocação de arqueólogo amador, já que as ruínas antigas remetiam-no para os paraísos perdidos, para essa ancestralidade condicionadora de muito do que cada homem é, sem dela tomar consciência.
Fascinado pela descoberta de si mesmo, Freud sentia-se diferente quando regressava desses périplos, melhor conhecedor das forças telúricas, que se digladiavam no seu inconsciente.
Obcecado pela organização, o médico vienense planeia ao pormenor as suas deslocações. No Verão parte com a família para a montanha, aproveitando para grandes passeios em que Anna, a filha dilecta, é a única a conseguir acompanhá-lo.
Depois parte para Itália. Com o irmão, com algum amigo mais chegado, com a cunhada ou com essa filha arvorada em discípula. Ali procura a confirmação do que fora pressentindo nas suas leituras nos meses anteriores.
Procura os sítios arqueológicos, espantando-se com as suas ruínas em verdadeiras viagens de apropriação do legado cultural da Antiguidade Clássica ocidental.
Mas Roma intimida-o, levando-o a adiar a sua descoberta por alguns anos, acabando por concluir a existência de um freio inconsciente a essa intenção: ali reside o Papa, a personificação do pai. E ele deseja penetrar a cidade-mãe, sentindo nisso algo de proibido.
Quatro sonhos sobre Roma, enquanto personificação do Eterno Feminino, convencê-lo-ão dessa tese. O que não o impedirá de arriscar a viagem, quando tem 46 anos. E de lamentar não ter aí ido mais cedo, como escreve a Martha.
Essas cartas, redigidas várias vezes ao dia, parecem servir de compensação ao seu temor de punição. Como se estivesse a repetir os passos de Aníbal, o chefe cartaginês, que desejara destruir Roma, para vingar a derrota do pai, acabando por sua vez vencido!
Ateu convicto - embora sem nunca renegar as suas raízes judaicas - Freud só se incomoda com o folclore cristão em torno do Vaticano. Que o levam, no entanto, a encontrar a demonstração das suas teorias sobre a origem dos fenómenos religiosos: todos os homens são seres incestuosos em potência, que desejariam possuir a mãe e matar o pai. A sociedade arranjara assim uma forma de evitar esse desiderato instintivo: a idolatria da figura paterna sob a forma de um Deus terrível na sua austeridade, castigador de todos os inconfessáveis «pecados»…
A religião é a Lei, a ferramenta de recalcamento do desejo de incesto. Se até Jesus morre a pedir perdão ao pai pelos seus pecados!
Pompeia é, também, outra descoberta muito gratificante: as ruínas apreciadas na sua pureza original é o símbolo do que fora recalcado. Porque adivinhava-se na cultura da sua população um hedonismo, que a natureza reprimira…
Noutra viagem, entre Trieste e Atenas, ele e o irmão serão tomados de inexplicável incómodo: afinal ambos conheciam a intenção do progenitor de ambos em conhecer a capital grega sem nunca a ter conseguido concretizar … Agora os filhos sentiam-se condicionados pela culpa de ultrapassarem o pai, de alcançarem o que nem sequer ele conseguira possuir…
Pouco a pouco, toda a teoria sobre o complexo de Édipo vai ganhando consistência…
Na sua faceta política, a psicanálise surge, cada vez mais, no seu potencial subversivo, porque remete para a revolta contra o Poder, personificação do pai. Porque com o derrube do Rei ou do Imperador, a instituição da democracia inscreve cada cidadão no seu próprio desejo de realização pessoal…
Mas o próprio Freud acaba por ser uma espécie de pai para os seus seguidores. Que lhe sofrem os azedumes, como sucedeu com o húngaro Sandor Ferenczi, cuja homossexualidade latente, traduzida numa natureza muito feminina, o exaspera durante a viagem à Sicília…
As viagens de Freud tornam-se mais raras, quando se detecta um cancro no seu palato, logo expandida para o maxilar. Mas ainda volta a Roma para uma viagem derradeira à Cidade Eterna. Nela reconhecendo a que melhor reflecte a sua vida interior…

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