segunda-feira, novembro 07, 2022

Miolo: Charles Nègre, Brahms, Cristèle Alves Meira

 


7 de novembro de 2022

Miolo. A parte interna do pão ou de certos frutos. O alburno. A medula. O tutano. Uma migalha. A essência de algo. Um juízo. O que importa reter de um quotidiano, que só nos salpica com a espuma das buliçosas vagas.

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A imagem foi captada em 1865, dois anos depois de Charles Nègre ter chegado a Nice e cinco desde que a  cidade voltara a ser francesa desanexando-se do Reino da Sardenha. Para trás o fotógrafo deixara uma frustrada carreira de pintor em Paris, de nada lhe tendo valido as lições de Ingres. No invento que Niepce apresentara duas décadas antes vislumbrou a verdadeira vocação. E potencial sustento, porque o recém-chegado comboio trazia catadupas de burgueses e aristocratas, que ele propunha eternizar nos seus clichés, mesmo obrigando-os a estáticas poses de alguns segundos.

Artesão das imagens, Nègre não seria creditado pela exploração de um estilo atribuído a Cartier-Bresson ou a Doisneau mais de sessenta anos depois.  Porque para ele a cidade, e em particular a Promenade des Anglais, constituíram um estúdio de fotografia em tamanho natural. E, mais do que a paisagem, interessavam-no as pessoas, muitas vezes convidadas a replicarem nas poses os gestos das atividades quotidianas. Daí resultam imagens sobre a realidade de há século e meio, devidamente humanizadas, senão mesmo aureoladas de um sentido poético.

Não faltando exemplos de pioneiros só muito tardiamente reconhecidos pelo seu talento, Charles Nègre é um deles!

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Da vasta obra de Brahms retenho, sobretudo, o terceiro andamento da terceira sinfonia, que demonstra plenamente o sentimento nostálgico, que lhe embebe toda a obra. Por isso à pueril questão quanto a gostar ou não da obra do compositor a resposta é enfaticamente sim. Por muito que não faltem os detratores, que o dão como mero, mesmo que talentoso, seguidor de caminhos definidos anteriormente por outros criadores de sons destinados a traduzirem as exaltadas paixões desse período.

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Para as gerações mais novas o microcosmos visitado em Alma Viva pode resumir-se à singularidade de crenças fundamentadas no sobrenatural, que se cingem a zonas recônditas do país, quase impermeáveis às mudanças impostas pela anual visita dos que emigraram para França. E, no entanto, todo o filme devolveu-me à infância em aldeia da margem sul, com Lisboa do outro lado do rio, e onde havia um peixeiro lobisomem, uma beata de sacristia envolta em branco lençol para, altas horas da noite, deixar o marido no leito conjugal e sossegar os ardores do amante ou as certezas com que ouvia as supostas vítimas de bruxedos explicarem porque lhes tinham causado irreversível mal! Mesmo que porfiasse na impossível cura numa ronda por bruxos, curandeiros e outros «artistas« que tais para que arrastava toda a família... 

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